A visita a Petrópolis nos abriu as
portas para um grande universo de leituras sobre o Brasil, a formação de sua
identidade e a evolução político-social. Interessaram-nos particularmente as
diversas leituras possíveis a partir do rico conjunto arquitetônico do centro
histórico petropolitano, e de como ele retrata o universo de representações de
momentos significativos da trajetória política do país, a começar pelo império.
Petrópolis foi planejada para
abrigar o Palácio Imperial de Verão. O projeto urbanístico da nova cidade nos
informa ricamente sobre como o próprio Império Brasileiro via a si mesmo: basicamente
como uma instituição européia em terras tropicais; a residência de verão é uma
tradição muito comum entre as monarquias européias. Magníficos palácios foram
construídos com essa finalidade, como o Nymphemburg de Munique, o Sanssouci
(feito construir por Frederico o Grande, rei da Prússia), o Palácio Schonbrunn
(residência de verão da familia imperial austríaca, em Viena) e o Royal
Pavillion (Brighton, Inglaterra), entre tantos outros; a própria família real
portuguesa passava o verão no Palácio de Queluz. Petrópolis é uma reprodução
dos hábitos das famílias reinantes européias. O próprio clima ameno da Serra da
Estrela nos remete de imediato ao clima europeu.
O palácio de verão atende ainda
outras demandas específicas do funcionamento das monarquias européias do
período: o retiro sazonal da família imperial para uma cidade retirada onde a
monarquia é a líder incontestável é uma forma de preservar a independência do
monarca em relação às forças políticas e econômicas que se tornam cada vez mais
preponderantes na agitação da metrópole. Não é de se estranhar que em momentos
de crise diversos reis e imperadores tenham buscado refúgio em seus palácios de
verão; os reis franceses chegaram ao extremo de deixar a capital em definitivo,
mudando-se para Versalhes.
A legitimidade do regime foi, na
prática, conferida com a aclamação popular por ocasião de momentos como a
Independência e a Maioridade (TORRES). Mas não podemos desprezar os elementos
do imaginário que conferem autoridade efetiva ao regime. As referências
arquitetônicas à Europa são, nesse sentido, parte expressa de um discurso de
legitimação: é a ligação de sangue com as grandes casas reinantes da Europa que
confere legitimidade à família imperial brasileira. As construções remetem
diretamente aos símbolos da cultura européia de então, onde as monarquias
buscam estabelecer alguma forma de identidade com o Império Romano: os motivos
greco-romanos, como colunas e obeliscos; o frontispício clássico das
edificações, as estátuas e bustos de personalidades. A Europa é o berço e
bastião da cultura clássica, a luz civilizadora que se espalha pelo mundo.
A arquitetura retrata também outro
importante elemento de legitimação monárquica: a religião católica, religião
oficial do Império (art. 5º. Da Constituição de 1824; cf. EMMERICK). É
significativo, nesse sentido, que a despeito de o palácio imperial e as
construções dos barões se estenderem generosamente no sentido horizontal,
enquanto símbolos de poder terreno, apenas a Catedral de São Pedro tem o
monopólio de expandir-se verticalmente, em direção aos céus, marcando
claramente seu status privilegiado de poder espiritual.
A distribuição espacial da cidade
retrata as dinâmicas próprias do funcionamento de uma monarquia: o palácio
imperial é rodeado pelos edifícios públicos que dão suporte ao funcionamento do
governo e principalmente pelas residências das figuras de destaque da Corte; a
posição das construções e sua suntuosidade possuem basicamente uma função de
ostentação do status que seu proprietário possui dentro da corte imperial.
Muito mais que um caráter funcional e utilitário, estas construções atendem a
uma necessidade propagandística, são concebidas para “serem vistas”, para
alardear tanto o poder econômico quanto o prestígio e/ou proximidade que o
proprietário goza junto ao imperador.
A própria família imperial, nesse
sentido, preocupa-se em construir obras simbólicas: a suntuosidade da Catedral dedicada
ao padroeiro da monarquia reafirma o comprometimento da instituição com o poder
espiritual; o Palácio de Cristal, baseado nos palácios de cristal de Londres e
do Porto, procura demonstrar a sensibilidade artística e a modernidade cultural
da família imperial.
Na seqüência vêm o golpe republicano
e os governos oligárquicos da Velha República; a família imperial é expulsa do
país; a arquitetura de Petrópolis retrata o discurso de ruptura do novo sistema
político: o desprezo pela monarquia é visível no abandono em que são lançadas
construções como o Palácio de Cristal ou a interrupção das obras da Catedral;
algumas edificações, como o Palácio Amarelo ou a Casa do Barão do Rio Negro
foram parcialmente descaracterizadas e adornadas com símbolos republicanos,
como o barrete frígio (frisos do plenário da Câmara Municipal, no Palácio
Amarelo) ou o busto feminino da Liberdade e o brasão de armas republicano de
cinco pontas (frente da Casa do Barão do Rio Negro). Os elementos da cultura
clássica greco-romana são reapropriados (Grécia e Roma são agora o berço do
modelo republicano), bem como elementos do próprio simbolismo monárquico
brasileiro, como a representação do Cruzeiro do Sul (agora simbolizando
exclusivamente a independência do país). A Rua do Imperador torna-se Avenida
Quinze de Novembro; a Rua da imperatriz será agora a Avenida Sete de Setembro.
Os elementos de continuidade,
todavia, também podem ser identificados: é significativo que as obras da
Catedral de São Pedro tenham sido retomadas e concluídas ainda durante a Velha
República; a despeito do discurso laico, a Igreja Católica seguiu exercendo um
papel de grande influência na política nacional. Reproduzindo a tradição
monárquica numa escala ampliada, o governo estadual do Rio de Janeiro buscou refúgio
na cidade, entre 1894 e 1903, devido à agitação que havia na capital por conta
da Revolta da Armada. À exceção de Floriano Peixoto, todos os presidentes
veraneiam na cidade.
Um segundo momento de ruptura ocorre
a partir de 1930, com Getúlio Vargas. O sistema político oligárquico entra em
crise e há enorme pressão sobre do estado por reformas; o novo sistema
republicano, centralista e modernizador, vai buscar sua legitimidade numa
experiência centralista anterior; o Império deixa de ser estigmatizado e passa
por um intenso processo de idealização, como o período mágico que produziu a
independência do país, manteve sua unidade, combateu seu maior inimigo externo
e lhe conferiu um longo período de progresso e estabilidade. Pedro II surge
agora como o líder paternalista que amava imensamente seu país. Os restos
mortais da família imperial, trazidos de volta ao Brasil, são solenemente
instalados no Mausoléu Imperial (no interior da catedral), inaugurado
pessoalmente por Getúlio Vargas; o Palácio Imperial é transformado em museu e
parte do rico acervo de uso pessoal da família imperial é recuperado e
preservado.
Durante o Estado Novo Getúlio passa
longos períodos na cidade, acompanhado da família. Os hábitos do ditador trazem
à Petrópolis a nova corte do regime: figuras políticas como Amaral Peixoto,
João Goulart, Celina e Moreira Franco passam a freqüentar a região com
frequência (MONTEIRO), e são seguramente um dos motivos que levaram o
empresário Joaquim Rolla a investir na cidade e construir o magnífico
Cassino-Hotel Quitandinha, em 1944. Como comenta brilhantemente o professor
Pedro durante o passeio, enquanto Dom Pedro quis reproduzir a Europa em
Petrópolis, Joaquim Rolla tentou construir aqui uma nova Las Vegas.
Finalmente, nossa atenção se volta para
o presente da cidade. É extraordinário ver um acervo patrimonial tão vasto e bem
conservado no Brasil, mas ao mesmo tempo é preocupante esse processo em que os
monumentos históricos passam a ser explorados como um produto vendido aos
turistas, por diversas razões: a primeira delas é que o “produto” é moldado
para atender o público que o consome, e esse processo compromete a análise
crítica do acervo; como se verifica facilmente nas falas do guia turístico que
nos acompanhou, a ênfase é normalmente posta na idealização do passado,
sobretudo do passado imperial; os “personagens-produtos” são essencialmente
bons, e sua bondade transparece em atitudes como a da princesa Isabel de
convidar um negro liberto para dançar, ou de Getúlio Vargas caminhando tranquilamente
pelas ruas e cumprimentando os passantes.
Ao mesmo tempo o excesso de
holofotes postos sobre grandes personalidades, como o imperador ou o inventor
Santos Dumont, obscurecem toda a sociedade que está à sua volta, e todas as
dinâmicas sociais que dão vida a um determinado período (exceção notável, nesse
sentido, é a Casa do Colono, que busca retratar o modo de vida dos imigrantes
alemães que construíram a cidade; uma única foto ali preservada, mostrando um
garoto negro caçando junto com uma família alemã, é um retrato eloqüente das
contradições sociais do periodo).
Porfim, a demanda por novos
“produtos” vai criando uma memória artificial da cidade: a presença da Casa
Encantada, por exemplo, serve de desculpa para a construção de uma gigantesca
réplica do “14 Bis” (cuja reprodução em miniatura é um dos artigos mais comuns
nas lojas de lembrancinhas) ou um monumento homenageando os “heróis da aviação
brasileira” na Praça da Liberdade, ou uma estátua de Santos Dumont no Museu de
Cera. Uma construção que abrigou uma grande tecelagem no final do século XIX,
um dos marcos da industrialização da região, está abandonado e desmoronando,
enquanto um gigantesco “Museu da Cerveja” é patrocinado por uma fabricante
local que faz um marketing pesado associando o nome da cidade ao seu produto.
É um problema comum a qualquer
grande destino turístico de caráter histórico, como Roma ou as Muralhas da
China; nossa preocupação é que isso não ocorra no uso pedagógico ou na produção
acadêmica sobre o patrimônio material da cidade: cercear o estudo
histórico-social crítico em nome de uma “defesa do turismo” seria um crime. Um
exemplo gritante está nos recentes desastres naturais que atingiram a região:
longe de silenciar sobre o ocorrido, é imperativo estudar os processos que
levam à ocupação desordenada do solo urbano, ou as dinâmicas sociais que
conduzem ao poder administrações municipais tão empenhadas em desviar verbas
emergenciais quanto em fazer vistas grossas às suas tarefas de fiscalização e
prevenção.
São estudos dessa natureza que
produzem conscientização e mudança de paradigmas. Nenhum silêncio complacente
vai fazer isso.
BIBLIOGRAFIA
EMMERICK,
Rulian. As relações Igreja/Estado no
Direito Constitucional Brasileiro. Um esboço para pensar o lugar das religiões
no espaço público na contemporaneidade. REVISTA LATINOAMERICANA n.5 - 2010
- pp.144-172
MONTEIRO Ruy. A República em Petrópolis, Política e Eleições Municipais, 1916-1996.
Petrópolis: Ed. Gráfica Serrana, 1997.
TORRES, João Camillo de
Oliveira. A democracia coroada. 2.
ed. Petrópolis: Vozes, 1964, p.81
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