quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Miscigenação na formação da identidade nacional - idéias de Euclides da Cunha expressas em "Os Sertões"

 Euclides da Cunha e Os Sertões
O autor, a obra e o contexto historiográfico

Nosso propósito nese trabalho é analisar as idéias do autor sobre a influência da miscigenação na formação de uma identidade nacional.
Euclides da Cunha (1866 – 1909) teve uma formação muito distinta da maioria dos escritores de sua época: foi militar e engenheiro; essa formação técnica e seu entusiasmo pelo cientificismo da Belle Epoque são traços característicos de sua obra mais famosa, Os Sertões, escrita em 1899, enquanto construía uma ponte em São José do Rio Pardo.
Era um entusiasta republicano; por conta disso foi expulso da Escola Militar (1888) e teve participação nos eventos da proclamação da República.
Sua obra está inserida no contexto de duas grandes dinâmicas:

O esforço do novo regime republicano em construir um imaginário que lhe dê legitimação e reforce a identidade nacional (Marins, 69). A construção da identidade nacional trabalha dois conceitos complementares: o Povo (dimensão cultural e antropológica) e a Pátria (a história, seus símbolos e heróis). Euclides, um republicano idealista, inicialmente viu em Canudos uma reação monarquista e a oportunidade de uma cruzada que legitimasse e consolidasse o novo regime. Esteve no local dos acontecimentos para cobrir a fase final da campanha, e então se deparou com uma realidade muito mais complexa do que esperava.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

História e Autoconhecimento

Hoje gostaria de falar um pouco sobre o projeto deste blog. Ele foi concebido com dois propósitos básicos: o primeiro é ser um espaço para compartilhar minha produção acadêmica da graduação de História e o segundo um ambiente para refletir a História enquanto ferramenta de busca do self, do si mesmo.
            Escrever bem demanda tempo e pesquisa, e tempo é algo que não tenho tido ultimamente. Então conto com a paciência do(a) amigo(a) leitor(a), o projeto está sendo implantado aos poucos, e espero que nas férias de fim de ano eu possa deixa-lo já com uma cara mais legal. Compartilhar os primeiros textos foi uma experiência linteressante, a demanda por resumos e resenhas de obras de historiadores tem uma enorme demanda na internet. História tem um enorme público, e é muito agradável perceber isso.
            Parte deste enorme sucesso dos assuntos históricos tem a ver com o segundo objetivo do projeto: a história enquanto busca de compreender o si mesmo olhando para o passado; não só coletivamente, como esforço para compreender a sociedade atual, mas na esfera individual. O indivíduo, ao mesmo tempo galho insignificante carregado pela poderosa correnteza do processo histórico, arrastado em meio às águas turbulentas das motivações humanas, e poderosa construção capaz de reter estas vagas e dar-lhe nova direção!

sábado, 20 de novembro de 2010

Pensando a Revolução Francesa - François Furet

    
      Resumo do livro Pensando a Revolução Francesa, de François Furet

“E a história que se escreve é também história dentro da história.”
Furet

1º. Biografias

François Furet (1927 - 1997): foi membro da resistência durante a guerra e membro do Partido Comunista por mais de dez anos, quando iniciou os estudos de história; rompeu primeiro com o stalinismo, e em seguida com toda a esquerda; a partir da década de 60 inicia os estudos da Revolução Francesa, e vai se converter num crítico ferrenho das interpretações marxistas e esquerdistas do fenômeno. Isso dará origem a um debate ácido em que será muitas vezes taxado de inconsistente.
 Aléxis de Tocqueville (1805 – 1859): escritor e historiador francês, célebre pela análise que faz da Revolução Francesa; oriundo de família aristocrática, seu avô foi guilhotinado durante o Terror  e sua família esteve exilada na Inglaterra. Foi deputado e em 1849 chefiou a pasta de Negócios Exteriores.
 Augustin Cochin (1876 – 1916), historiador vindo de uma tradicional família católica e pouco conhecido antes de Furet, faz uma análise histórico-sociológica da Revolução Francesa, usando conceitos de Durkheim; a maior parte de sua obra foi publicada postumamente, tendo ele falecido combatendo na I Guerra Mundial.
  
2º. Análise da Obra

            Como explica o próprio autor em seu prefácio, a obra é composta de duas partes: a primeira é uma síntese sobre como pensar um evento como a Revolução Francesa; na 2ª. Parte ele apresenta as etapas de sua pesquisa, sobretudo o estudo das obras de dois historiadores franceses, Aléxis de Tocqueville e Augustin Cochin, que ele considera complementares e na qual baseou seu sistema de interpretação.
             Furet é um crítico feroz da historiografia clássica da Revolução Francesa, sobretudo os chamados jacobino-marxistas; os historiadores marxistas do século XX , sobretudo, ao apontar a Revolução Francesa como o berço da Revolução de 1917, tornam-se teleológicos; a revolução deixa de ser um campo aberto de possibilidades, e o único futuro possível é a revolução soviética.
            Denuncia o que ele classifica de mito das origens, de ver em 1789 o ano zero da atual sociedade. Para Furet isso é resultado de uma construção ideológica dos próprios revolucionários, em busca de legitimar o movimento; eles se apresentam como as forças do futuro e da modernidade em ação.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Revolução Hispânica

Nação na América Espanhola – Questão das Origens
François-Xavier Guerra

            Dezenove nações saem de um mesmo conjunto político, a monarquia hispânica nas américas. Não há um movimento nacionalista antes da independência; a independência precede a nação e o nacionalismo.

Nação moderna:
  • Arquétipo de ordem ideal
  • Nova concepção de coletividade humana: novos laços sociais, estrutura, fundamento das obrigações políticas, relação com a história, direitos.

            A América no Antigo Regime é um mosaico identitário, apoiado na família, na raça e no local de nascimento.
            Duas dinâmicas: política e cultural
            Política:
            A base da estrutura política são as cidades; não há representação política fora dos cabildos municipais. Há uma concepção pré-absolutista do poder, visto como um pacto social com obrigações recíprocas.
            A crise é de origem externa, o vazio de poder provocado pela queda da monarquia; afeta o imaginário de pátria imperial (fidelidade do vassalo ao senhor, defesa da fé, preservação dos costumes). A necessidade de constituir uma nova unidade política esbarra na imensa fragmentação política baseada nas cidades. O que inicia como um movimento de união para defender o rei evolui rapidamente para um revolução por um novo modelo de sociedade; é a revolução no imaginário (1808). O modelo seguido nas américas vem dos liberais espanhóis (constituição de 1812).
            A origem da nação é essencialmente política; a esfera cultural será criada depois. Apenas reinos mais consolidados, como México e Chile, tinham uma identidade cultural anterior.

Chiaramonte: Origens da Nação Argentina

Povo:
Conjunto abstrato de indivíduos – igualdade política
No Antigo Regime: estamentos, corporações, estratificação (desigualdade política); população de uma cidade
Nação:
Identificada como expressão de nacionalidade a partir de 1830.
Ilustração, contrato social, população sujeita a um mesmo governante; sinônimo de Estado.
Estado:
Definição ambígua, devido à fluidez das fronteiras e indefinição da questão centralismo x autonomismo.
            A convocatória de 1810 é dirigida aos povos e cidades do Rio da Prata; não há ainda povo argentino; a pátria é a cidade, e a primeira representação do período de independência é o cabildo; a primeira identidade, a de americanos.
            O termo argentino é inicialmente usado para a cidade de Buenos Aires; usado para todo o pais a partir de 1826.

Cortez de Cadiz – Berbel

            Contextos de independência e debate parlamentar: EUA x parlamento britânico, Haiti x parlamento da Revolução Francesa.
            Cortes de Cadiz (1810-1814): o desaparecimento do rei faz o poder retornar ao povo; conflito entre colônias querendo maior autonomia x centralismo dos peninsulares.
            Exigências americanas:
  • Igualdade de representação nas cortes.
  • Inclusão das castas na participação eleitoral.
  • Autonomia administrativa para as províncias.
            As cortes rejeitam os pedidos americanos (agosto/1811); o caminho está aberto para a radicalização do discurso.
2ª. Revolução Liberal: em 1820 as cortes reuniram-se novamente; houve um esforça para formar uma commonwealth com o México, que fracassou; ele torna-se independente em fevereiro de 1822. Apenas Cuba, Porto Rico e Filipinas seguem ligadas à Metrópole.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

DONGHI, Tulio Halperin – A Crise da Independência

DONGHI, Tulio Halperin – A Crise da Independência

            A reforma bourbônica produziu reações adversas nas américas, sobretudo pelo aumento de impostos e o favorecimento de peninsulares na ocupação de cargos, mas não é causa imediata de ruptura. Os americanos querem na verdade negociar um novo pacto colonial. As rebeliões da época são basicamente contra os excessos da burocracia local; todas proclamam sua fidelidade ao rei.
            As rebeliões, mais que indicar a presença de novos elementos premonitórios da crise, revelam a persistência das debilidades estruturais.
            A circulação das novas idéias, sobretudo os novos conceitos republicanos, também prenuncia a crise. Mas é sobretudo no campo acontecimental que surgirão as motivações para a independência:

  • Revolução Francesa
  • Aliança entre Espanha e França; guerra com a Inglaterra; bloqueio inglês e liberdade de comércio com nações neutras.
  • Após Trafalgar, agravamento do bloqueio inglês; ataques ingleses no Prata, 1ª. Experiência de auto-governo em Buenos Aires.
  • França invade a Espanha; prisão do rei; aliança com a Inglaterra. O vazio de poder leva à formação das primeiras juntas

            Instalada a crise na Europa, as elites locais americanas buscam ocupar o vazio de poder que se produz, entrando em choque com a burocracia peninsular aqui instalada; governadores, cabildos e audiências disputam a legitimidade de governar as colônias. O aprofundamento do conflito entre criollos e espanhóis leva a acordos políticos em busca de apoio popular.
            Com a derrota da França e a restauração da monarquia tropas são enviadas para a América; reação legalista.
            A 2ª. Revolução liberal na Espanha (1820-1823) produz uma reviravolta na situação, diversos legalistas passam a apoiar a independência; as forças espanholas se enfraquecem. Inglaterra e Estados Unidos passam a apoiar abertamente as nações independentes.

Dinâmicas específicas:

Argentina: conflito entre autonomistas (Artigas) e centralistas (cabildo de Buenos Aires)
Colômbia/ Venezuela: reformismo moderado de Bolívar. Longa guerra civil agravada por conflitos raciais e interesses de elites locais.
México: diferente das outras regiões, onde a independência é patrocinada pelas elites, aqui a revolta parte de índios e mestiços e tem forte influencia religiosa. O partido peninsular alia-se às elites locais para derrotar a revolução popular. Com a revolução liberal na Espanha os monarquistas passam a apoiar a independência mexicana.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

INCONFIDÊNCIA MINEIRA Comentários sobre textos de KENNETH MAXWELL e JOÃO PINTO FURTADO

O propósito deste trabalho é fazer uma análise comparativa dos textos de dois estudiosos da Inconfidência Mineira, Kenneth Maxwell e João Pinto Furtado, destacando os pontos principais de suas idéias e as questões em que são divergentes.

Kenneth Maxwell
            Foram objeto de análise seus textos “A Devassa da Devassa – A Inconfidência Mineira: Brasil-Portugal – 1750-1808, págs. 141 a 167, e “A Inconfidência Mineira: dimensões internacionais, págs. 125 a 155; suas idéias sobre a Inconfidência Mineira poderiam ser assim resumidas:

  • O historiador britânico acredita que a Inconfidência Mineira é um projeto revolucionário fortemente inspirado nos ideais da Revolução Americana; seu propósito era de utilizar a inquietação popular que a cobrança da derrama provocaria para desencadear uma revolta que culminaria com a proclamação de uma república independente.
  • A maioria dos conspiradores tinha uma importante motivação pessoal para romper com a Coroa: a perda de privilégios adquiridos durante o período pombalino e principalmente as enormes dívidas contraídas, sobretudo com a Fazenda Real.
  • O grupo de conspiradores, formado em grande parte por importantes aristocratas locais, possuía elementos com elevado conhecimento intelectual, e estavam bem informados sobre a independência americana e as idéias políticas então em voga na Europa, como o demonstram diversas obras disponíveis nas bibliotecas de alguns deles.
  • Por meio de José Álvares Maciel, estariam informados da simpatia que ingleses e americanos nutriam pela idéia de um levante brasileiro.
  • Como declara solenemente em sua fala durante encontro comemorativo do bicentenário da morte de Tiradentes, Maxwell considera que “a Inconfidência Mineira foi o único movimento anticolonial que explicitamente duvidou da relação colonial e adaptou um projeto claramente republicano e nacionalista”.
  • Apesar do foco claramente regionalista dos inconfidentes, Maxwell acredita num projeto nacionalista; cita em apoio de sua idéia declarações de Tiradentes que fariam alusão a um “Brasil livre e republicano”.
  • Também em apoio da idéia nacionalista, acredita que o movimento tinha conexões em outras capitanias, sobretudo a do Rio de Janeiro, onde Tiradentes teria cooptado comerciantes cariocas insatisfeitos com as medidas recentes de repressão ao contrabando de mercadorias.

Em resumo:

  • Uma revolução de caráter claramente republicano e nacionalista.
  • Contato com potências estrangeiras simpáticas ao projeto.
  • Apoio de comerciantes do Rio de Janeiro ao levante.
  • Projeto conservador; motivação econômica em benefício da oligarquia local.

Maxwell analisa a conjuntura sócio-econômica que torna Minas peculiar para sediar um movimento de resistência ao sistema colonial:

A política pombalina de nomear funcionários administrativos, magistrados, fiscais e militares entre membros da oligarquia local, torna a estrutura estatal sujeita às influências e pressões locais, muitas vezes em detrimento da própria Coroa.
A dinâmica econômica, com notável diversificação, indo da mineração à atividade agrícola e pastoril, incluindo uma incipiente (e ilegal) manufatura de tecidos e um intenso comércio.
Ao contrário do litoral, baseado em monoculturas e com uma sociedade composta essencialmente de senhores e escravos, Minas desenvolve uma sociedade urbana complexa apoiada no comércio regional e em atividades econômicas variadas.
A elite é letrada e está informada das novas idéias na Europa e Estados Unidos; reúnem-se para discutir poesia e filosofia. Obras de autores mineiros expressam o orgulho e a valentia dos habitantes da terra mineira.
A decadência da mineração coincide com a devolução do controle do aparelho estatal aos reinóis e as ordens de aumentar o rigor no recebimento dos tributos, colocando a Coroa em choque frontal com os interesses da oligarquia local.

João Pinto Furtado
            Foram analisados os textos “O Manto de Penélope: História, mito e memória da Inconfidência Mineira de 1788-9”, págs. 48 a 75 e págs. 128 a 213.
            Como fica implícito no título da obra, uma alusão ao manto com que a esposa de Ulisses engana os pretendentes à sua mão (na Odisséia de Homero), Furtado acredita que o mito produzido pelo nacionalismo brasileiro do século XIX esconde a real dimensão da Inconfidência Mineira:

  • Ele inicia alertando para o anacronismo de atribuir significados modernos a termos como revolução, república, estado, etc. Dá ênfase especial ao significado do termo república no Antigo Regime, sinônimo de governo baseado em leis, consenso jurídico.
  • Em seguida minimiza os tão propalados contatos com potências estrangeiras; mesmo a comunicação com Thomas Jefferson, em seu entendimento, é inexpressiva; o estudante brasileiro agiu, ao que tudo indica, por impulso próprio (não age como representante de nenhum grupo organizado) e os resultados são pífios. Muito pelo contrário, as comunicações de Jefferson com seu governo em 1789 deixam claro que o recente acordo comercial com Portugal deixavam o jovem governo norte-americano na pragmática posição de não envolver-se em nenhuma agitação nas colônias lusas.
  • O autor não vê provas do envolvimento de cariocas na conspiração; considera que Maxwell exagera em suas conclusões e apresenta uma teoria sobre a tentativa de implicar o Rio de Janeiro na conspiração, que veremos em breve.
  • Furtado destaca ainda a enorme heterogeneidade dos conspiradores, e sobretudo o conservadorismo das lideranças, tornando pouco crível que se engajariam em algum projeto revolucionário com idéias avançadas como a libertação de escravos ou a constituição de um parlamento.

Furtado propõe duas interessantes análises:

A primeira aborda os conflitos e interesses que estavam por trás do processo da devassa: a devassa mineira, nos inquéritos presididos por homens de confiança nomeados pelo Visconde de Barbacena, dá grande ênfase na participação de conspiradores cariocas, que teriam sido inclusive responsáveis pelos contatos com as potências estrangeiras; alguns depoimentos sugerem até que o centro da conspiração estava no Rio. Estes depoentes, no entanto, mais tarde declararam haver sido enganados com ardis e falsas promessas de um escrivão.
      Parece que o governador de Minas quis compartilhar com o Vice-Rei o ônus de ter súditos importantes preparando uma rebelião.
      Ao mesmo tempo, reflexo da corrupção do aparelho estatal de então, ele parece ter implicado importantes figuras locais com a conspiração, como o cel. José Aires Gomes, apenas para aumentar a arrecadação com o seqüestro de bens dos acusados: o volume total do seqüestro dos inconfidentes praticamente correspondeu à arrecadação do quinto real sobre o ouro no ano de 1789 (pg. 205).
      Por outro lado, questões econômicas igualmente parecem ter livrado pelo menos um conjurado da devassa carioca; José de Sá Bittencourt e Accioli teve sua inocência atestada em três dias de interrogatório, graças ao ouro que teria sido fartamente distribuído entre juízes e funcionários.
      Em resumo: os depoimentos são moldados pelos conflitos e interesses da administração colonial portuguesa. Questões como a participação carioca ou os contatos com o estrangeiro, bem como o grau de participação dos conspiradores (e até mesmo a sentença final) atende em grande parte a um jogo de interesses, e como tal precisa ser interpretado.

      A segunda idéia afronta conceitos tradicionais sobre a Inconfidência: Furtado simplesmente não acredita numa revolução. Não vê na Inconfidência Mineira nem a ideologia ou a organização que um movimento desta natureza exige; acha mais provável que os conspiradores estivessem organizando um motim contra a cobrança da derrama, e defende seu ponto de vista argumentando que os inconfidentes pararam de se reunir assim que o governador cancelou a cobrança.
      Argumenta que, entre 1713 e 1746, em virtude de questões relacionadas com cobranças de tributos ou corrupção dos agentes estatais, houve pelo menos oito rebeliões envolvendo algumas das principais vilas da capitania.
      Eram levantes contra os abusos da administração local, conduzidos aos gritos de “Viva o Povo, Viva el-Rei, Morte ao Governador!”. Num mundo carente de representação popular como o Antigo Regime, tais levantes eram vistos como um recurso legítimo: denunciava-se o abuso local ao mesmo tempo que se exaltavam as instituições e a figura do rei.
      Isso explicaria a frase de Tiradentes: “não se trata de levantar, é antes restaurar!”.
      O motim projetado pelos inconfidentes teria na verdade sido vítima de uma “leitura” diferenciada por conta dos acontecimentos internacionais: as autoridades coloniais estavam evidentemente preocupadas com as repercussões que a independência norte-americana poderia causar na América Portuguesa. E, uma vez instaurada a devassa, já os acontecimentos da Revolução Francesa dominavam o imaginário das autoridades; isso talvez explicasse a decisão de aplicar uma punição dura e exemplar em Tiradentes, para dissuadir outros movimentos do tipo.
      Encerrando a questão, o resultado prático e imediato da Inconfidência foram concessões semelhantes aos que motins anteriores objetivavam: a derrama foi oficialmente suspensa, e em 1791 foi criada a Vila de Barbacena na região que forneceu a maioria dos conspiradores, o que acabou com a reclamações dos locais de que não tinham representação política junto ao governador.

      Em resumo:

·        A Inconfidência Mineira seria um motim tramado pela oligarquia local para impedir a cobrança da derrama
·        O movimento é regional e atende demandas específicas de Minas
·        Não há projeto de ruptura com a Coroa; apenas a intenção de forçar uma negociação que melhore a situação da oligarquia em termos econômicos e políticos.

Outras Considerações

      Apesar de divergirem muito em relação aos propósitos e dimensões da Inconfidência, os autores jogam luz sobre a sociedade mineira de então, dominada por violentos conflitos:

A enorme corrupção do aparelho estatal e das forças mantenedoras “da ordem”, os Dragões. A cobrança de taxas coloca as autoridades em conflito constante com as populações locais
Durante o século XVIII existiram em Minas um total de 127 quilombos, onde coexistiam escravos fugidos, índios carijós e brancos, fugindo das agitações sociais e políticas das vilas mineiras.
Os motins são selvagens; há inúmeros relatos de atos de vandalismo contra propriedades, mortes, estupros e comportamento bárbaro.

      E tudo isso coexiste com uma sociedade urbana refinada que  envia seus filhos para estudar na Europa, veste seda importada, realiza saraus poéticos e mantêm magníficas bibliotecas...

A Vida de Baquaqua

Mahommah Gardo Baquaqua nasceu em Djougou (atual Benim) entre 1820 e 1830, segundo Lovejoy (LOVEJOY, 2002; p. 17), em uma família muçulmana de proeminência local. Freqüentou por algum tempo a escola corânica, mas abandonou os estudos e trabalhou como ajudante do tio, ferreiro do rei de Djougou.
Ainda adolescente participou das guerras de sucessão em Daboya como carregador, junto com o irmão, onde foi capturado e em seguida resgatado.
De volta para Djougou tornou-se serviçal de um funcionário local, talvez o chefe de Soubroukou, que ele chama de rei. Seu status neste período é ambíguo, e será analisado nos próximos tópicos. Os excessos cometidos neste período o tornaram alvo de uma emboscada, onde foi aprisionado; transportado para o Daomé, teria sido embarcado num navio negreiro em 1845, e levado para Pernambuco, no Brasil.
Baquaqua esteve em Pernambuco por cerca de dois anos; aprendeu o português e chegou a exercer funções como “escravo de tabuleiro”, vendedor externo, função normalmente reservada a escravos de confiança e inteligentes. A dureza do tratamento que recebia fez com que voltasse ao vício do álcool e até que tentasse o suicídio.
Levado para o Rio de Janeiro foi incorporado à tripulação do navio Lembrança, que fazia transporte de mercadorias com as províncias do sul do Brasil. Uma remessa de café para os Estados Unidos, em 1847, foi seu passaporte para a liberdade. O navio, que chegou a Nova Iorque em junho, foi abordado por abolicionistas locais, que o incentivaram a fugir do navio. Após a fuga, no entanto, foi preso na cadeia local, e apenas a colaboração dos abolicionistas (que facilitaram a fuga da prisão) impediu que fosse restituído ao navio. Foi então enviado ao Haiti, onde passou a viver com o reverendo Judd, um missionário batista.
Convertido e batizado, em 1848, Baquaqua retornou aos Estados Unidos devido à instabilidade política que o Haiti vivia então; estudou no New York Central College, em McGrawville, por quase três anos; em 1854 foi para o Canadá; sua bibliografia foi publicada no mesmo ano por Samuel Downing Moore em Detroit.
Não sabemos o que acontece com Baquaqua depois de 1857; ele estava então na Inglaterra, e havia recorrido à Sociedade da Missão Livre Batista Americana para ser enviado como missionário à África.

Baquaqua e a etnicidade

Um dos objetivos de Paul Lovejoy, em seus estudos sobre a escravidão, é entender como os escravos percebiam-se a si mesmos etnicamente, como se definiam. A etnicidade não é importante em si, mas fornece uma chave metodológica para a reconstrução de padrões mais gerais de história. Estes “chapéus” ou rótulos que o indivíduo usa mostram sua interação na esfera social. Em outras palavras, Lovejoy quer saber como este negro que chega às costas americanas vê a si mesmo, e como estes valores se transformam diante da nova situação que ele vive aqui:

Em seu contexto histórico e cultural mais amplo, o relato de Baquaqua nos capacita a uma apreciação mais plena da “morte social” e do novo despertar espiritual que os escravizados podiam experimentar no curso de sua migração transatlântica. (LOVEJOY, 2002; p. 38)

Lovejoy procura em Baquaqua informações que possam ser generalizadas e usadas para compreender um universo mais amplo que sua própria odisséia.
Seu ponto de partida é o nome africano que Baquaqua recupera após sua libertação: Mahommah Gardo Baquaqua; Mahommah nos remete à formação religiosa de sua família e sua educação islâmica; Gardo, ou Gado em dendi e hauçá, nos remete diretamente à sua própria família: é o nome dado à criança nascida logo após gêmeos (a superstição sobre os gêmeos, e a situação particular da criança que os procede, é descrita no capítulo sete de sua biografia, indicando o quanto o autor se identifica com estes valores). Mas seu sobrenome é um mistério, embora indique uma similaridade sonora com um título de Borku, yan kwakwa, o funcionário responsável pelos caravançarais.
Em seguida Lovejoy lista uma série de “rótulos” que Baquaqua recebeu ao longo de sua epopéia: levado para o Brasil, recebeu o nome cristão de José da Costa, ligando sua identidade à do seu dono; se sua formação islâmica tivesse sido conhecida provavelmente seria identificado como um malê; chegado ao porto de Nova York, ele é um “brasileiro”; fugido para o Haiti e convertido, será primeiro cristão, estudante e abolicionista; naturalizado no Canadá, torna-se súdito inglês.
Comparando o texto de Lovejoy e a biografia de Baquaqua, eu afirmaria o seguinte:
Baquaqua demonstra grande identificação com sua origem familiar, sobretudo com a figura da mãe, que ele declara ter esperanças de reencontrar num eventual retorno à África, e com a rede de relações familiares, que lhe permitiram aprender o ofício de ferreiro e mais tarde atuar na corte local. Apesar de seu fracasso nos estudos corânicos e de sua fraqueza pela bebida, carregou consigo valores islâmicos, como se percebe pelo resgate do nome e pelo uso eventual de termos árabes em sua correspondência; quando de sua chegada à McGrawville, o jornal local o descreve vestindo uma túnica árabe (LOVEJOY, 2002 ;p. 37).
Estes são seus valores naturais; é a eles que deseja retornar, e rebela-se violentamente toda vez que a dinâmica da escravidão quer apartá-lo de seus valores. Ao mesmo tempo, sempre com espírito pragmático, Baquaqua tenta se adaptar à nova realidade: esforça-se por aprender o português quando chega ao Brasil, e busca atender às expectativas de seus donos, na esperança de conquistar sua confiança e adquirir um status ou tratamento mais digno (talvez tentando reproduzir aqui o comportamento servil que lhe permitiu adquirir uma posição de status na corte local de Djougou). Mas o tratamento dispensado aos escravos no Brasil é intolerável para ele, e em sua desesperança ele começa a enxergar a morte como única saída possível.
A repentina oportunidade de recuperar a liberdade dá-lhe novo alento; seu espírito flagrantemente rebelde mostra claramente que não foi dobrado pela violência da escravidão. Uma vez livre, vai para o Haiti, então um bastião de liberdade africana no continente americano; é a indicação de uma vontade férrea de retornar às origens.
É difícil de julgar a sinceridade da conversão de Baquaqua, dado o quadro de opções que ele tem diante de si no Haiti: a conversão lhe garante um teto e segurança imediatos, e uma promessa de voltar à África num trabalho missionário futuro; seria portanto uma decisão pragmática e compreensível. Se, no entanto, ele de fato abraçou o cristianismo, então estamos diante da dinâmica de transformação de valores que procede a diáspora, acrescentando o imaginário cristão aos seus valores originários e produzindo novos valores originais; tal como no Brasil, nos Estados Unidos a conversão dos africanos ao cristianismo produzirá um cristianismo híbrido e original, com expressões culturais e religiosas próprias.
Finalmente, parece simbólico termos a última notícia de Baquaqua ainda lutando por regressar à África, por realizar seu sonho de regressar às origens; voltando às idéias generalizantes de Lovejoy, é como se Baquaqua representasse individualmente um arquétipo inconsciente dos descendentes afro-americanos suspirando pelo regresso à Mãe África.
 
Baquaqua como peça da propaganda religiosa e abolicionista

 Há uma outra dimensão em que gostaria de comentar a biografia e a própria vida de Baquaqua: enquanto personagem da propaganda de um movimento religioso e abolicionista.
 A Sociedade da Missão Livre Batista Americana (American Baptista Free Mission Society) foi fundada em Boston, em maio de 1843; ela era um braço do Movimento Batista da Livre Vontade, e recebia o apoio de outras igrejas abolicionistas. Sua primeira missão internacional começou no Haiti, a partir de janeiro de 1845; o trabalho no Haiti, além do apoio humanitário e evangelização, tinha dois propósitos ambiciosos: pressionar o governo dos Estados Unidos a reconhecer a independência haitiana, e preparar missionários para um futuro trabalho na África (FOSS, MATHEWS; 1850, p. 384-390).
O Reverendo Judd, escrevendo sobre as atividades missionárias no Haiti, cita a conversão de Baquaqua como um dos primeiros sucessos do trabalho; sua cerimônia de batismo, em 1848, foi relatada no jornal Christian Contibutor and Free Missionary e posteriormente no livro Facts for Baptist Churches , de Foss e Mathews (1850), Aqui começa o valor propagandístico de Baquaqua, apresentado como um africano muçulmano trazido como escravo para o Brasil, e que através de uma epopéia emocionante conseguiu sua liberdade nos Estados Unidos e agora aderiu ao cristianismo.
Baquaqua justifica sua saída do Haiti como uma fuga das agitações provocadas pelas guerras locais, mas parece muito provável que o Reverendo Judd o tenha convencido a retornar para os Estados Unidos para ser exibido aos grupos nacionais das Missões Livres; o fato de retornar acompanhado pela esposa de Judd e sua irmã, e de haver visitado diversas cidades do Estado de Nova York onde havia grupos das Missões Livres e abolicionistas proeminentes parece corroborar isso.
Em seguida Baquaqua é enviado para o New York Central College, em McGrawville, uma instituição criada pelos batistas abolicionistas em 1849, uma das primeiras escolas dos Estados Unidos a aceitar classes mistas de brancos e negros, bem como de aceitar professores negros (Wikipédia, verbete New York Central College; consultado em 18/05/2010). A chegada original de Baquaqua ao Colégio, vestindo uma túnica árabe, tal como foi relatada pelo jornal local, o McGrawville Express (28/03/1850), parece igualmente atender a propósitos publicitários, de divulgar o trabalho realizado no Colégio recém-fundado.
Com efeito, durante sua permanência de quase três anos lá, o Colégio cresceu e chegou a abrigar 200 estudantes, incluindo filhos negros de famílias proeminentes da Filadélfia  (LOVEJOY,  2002;p. 28-29).
Em janeiro de 1854 ele parte para o Canadá e torna-se súdito britânico; em algum momento deste período ele encontra-se com Samuel Downing Moore, um unitarista irlandês de Michigan, a quem relata sua história; as notas de Samuel foram convertidas num livro publicado em agosto do mesmo ano, em Detroit (idem; p. 29).
A biografia de Baquaqua é o ponto alto desse esforço propagandístico, e tem que ser analisada levando-se este elemento em conta; alguns episódios de sua vida podem ter sido alterados para se adequarem melhor à aura heróica e exótica que se criara em torno de sua conversão, um triunfo do trabalho missionário dos batistas abolicionistas. Allan D. Austin, em notas inseridas numa edição comentada da biografia de Baquaqua, queixa-se das freqüentes interpolações de Samuel Moore na narrativa:

42- Foi esta a voz de Baquaqua, que parece tomar conta da narração, ou a de Moore lembrando-se de escrever para os jovens? (Biografia, p. 134)

59- O anticatolicismo de Moore é bem evidente aqui. (idem, p.137)

Vários pontos da narrativa podem então ter sofrido alterações para parecerem mais interessantes:

  • A família de Baquaqua é apresentada como tendo grande importância, tanto na estrutura religiosa local (o tio, sacerdote e ferreiro do rei), como político/econômica (a mãe originária de uma família rica e parenta de um rei, a quem Baquaqua vai servir mais tarde; o pai, um comerciante importante que mais tarde empobreceu); os nomes da maioria dos parentes não são citados, o que impede uma verificação.

  • Baquaqua é apresentado como guarda-costas de um rei, o terceiro na escala de comando; “o rei nada escondia de mim”, afirma ele. No entanto, ao descrever os serviços que teria prestado ao soberano, há apenas o relato da tortura que aplicou a um adúltero e o roubo de vinho para abastecer a mesa do rei; Austin é o primeiro a considerar a possibilidade de Baquaqua ter sido escravo ou servo numa corte local; Lovejoy acredita que ele esteve a serviço do chefe de Soubroukou, um funcionário do rei de Djougou; e que sua função como serviçal do palácio era normalmente reservada a escravos, ou a criminosos em busca de proteção. Acrescenta ainda que o relato mais antigo sobre Baquaqua afirma que ele foi escravizado em tenra idade e mantido nessa condição na África ocidental (LOVEJOY, 2002            ;p. 21). Admitir que Baquaqua já fosse escravo em sua terra de origem pode não ter parecido muito edificante para os abolicionistas americanos.

  • O lado do escravismo no Brasil, as referências ao catolicismo são apresentadas de forma negativa; Baquaqua se recusa a considerar como cristãos os valores católicos com a qual toma contato (“Eu não era cristão, não conhecia o amor do Salvador (...) Essas boas novas ainda não haviam sido comunicadas à minha mente”; (Biografia, p. 96).

  • Por outro lado, tanto a libertação (“A primeira palavra em inglês que meus dois companheiros e eu aprendemos foi free”; Biografia, p. 103), quanto a conversão (“Depois de minha conversão ao cristianismo, larguei a bebida e todos os tipos de vícios”; Biografia, p. 111) são destacadas de forma positiva, por razões evidentes.

  • Baquaqua se queixa de haver sido racialmente discriminado durante sua permanência no New York Central College, mas o relato (sumário) atenua os constrangimentos, classificando-os de “piadas e outras brincadeiras” (idem, p. 119); o episódio serve para louvar a paciência cristã de Baquaqua.

Aqui seria interessante fazer outro esclarecimento: os batistas livres, apesar de serem favoráveis à abolição da escravatura e de lutarem ativamente para isso, eram em sua maioria radicalmente contrários à miscigenação; para muitos deles a solução ideal seria libertar os negros e enviá-los de volta para a África. Baquaqua foi testemunha das limitações da tolerância racial de seu grupo religioso: a senhorita Katie King, que compôs os versos que ele recitou diante do colegiado primário do New York Central College  (idem,  p. 117),  e filha de um ministro da igreja, apaixonou-se por  William Grant  Allen, um dos mais proeminentes professores do colégio.
William, filho de pai escocês e mãe mulata, ficou órfão e foi educado por uma família afro-americana. Dirigiu um jornal abolicionista por algum tempo e foi o segundo afro-americano a concluir um curso superior nos Estados Unidos (formou-se em 1850 em Letras, que incluía uma formação em língua grega) (ELBERT, 2002; p. 20-30). Apesar deste currículo invejável, quando Willian pediu ao reverendo Lyndon King a mão de sua filha em casamento houve uma violenta reação da comunidade branca local. William foi perseguido e teve que fugir para não ser morto. Katie King deixou sua família; casaram-se pouco depois e foram viver na Inglaterra, onde tiveram filhos; o trabalho abolicionista de William prosseguiu, e ele chegou a publicar dois livretos condenando a escravidão e a discriminação racial nos Estados Unidos; Lovejoy especula que Baquaqua teria visitado o casal quando esteve na Inglaterra (LOVEJOY, 2002; p. 30).
             A ordenação de Baquaqua como ministro da igreja elevaria seu valor propagandístico, mas algo impediu que isso acontecesse; como argumenta Lovejoy:

            (...) não se sabe se Baquaqua era suficientemente convincente, para seus benfeitores, como um candidato adequado ao trabalho missionário (idem, p. 34).

            A despeito de Baquaqua queixar-se de ter dificuldade para falar e entender a língua inglesa, Lovejoy considera que suas cartas demonstram um domínio considerável do idioma. Allan Austin, que estudou sete cartas escritas por Baquaqua, diz o seguinte:

            Elas mostram que Baquaqua estava procurando uma maneira de retornar à África como missionário, professor ou cozinheiro. Elas também mostram que ele estava despreparado religiosamente, intelectualmente ou emocionalmente para qualquer dessas posições (AUSTIN, 1997; p. 160).

            O silêncio que envolve Baquaqua depois de 1857 sugere um possível afastamento da militância religiosa. Se falecesse enquanto membro ativo da igreja é muito provável que haveria algum tipo de nota na imprensa de inspiração batista; a documentação sobre os batistas neste período, mantida pelo Centro de Pesquisas Amistad, é muito detalhada.
            Admitindo-se seu afastamento, há várias possibilidades:

Uma recaída no vício do álcool, tão recorrente em sua biografia, e um melancólico final de uma vida tão extraordinária, mas tão carente de afeto verdadeiro e integração.

Talvez o êxito em finalmente retornar ao continente africano, fora dos canais missionários; isso traria o ciclo de volta ao ponto de partida e abriria um leque enorme de questões interessantes. Mas para tanto seria necessário encontrar descendentes ou algum registro escrito, coisas difíceis de encontrar em terras de história política tão instável.

Baquaqua poderia ter se associado ao trabalho do professor William na Inglaterra. Apesar de viver num estado de crescente penúria, William G. Allen deixou a carreira religiosa e seguiu lutando contra a discriminação racial como jornalista e escritor, tendo escrito dois livros, The American prejudice against color (1853) e A Personal Narrative (1860). Sua história de amor com Katie King inspirou um romance escrito por Louisa May Alcott, M.L. (1863); foi o primeiro afrodescendente a dirigir um colégio inglês. Apesar da rica biografia, seu fim é desconhecido, e a última informação a seu respeito é de 1868 (ELBERT, 2002; p. 20-30); prova de que o ostracismo que envolveu Baquaqua parece ser uma constante entre seus militantes irmãos de cor.


Conclusões

A vida de Baquaqua ilustra dois importantes processos:

  • Ele é testemunha viva do tráfico de escravos no Atlântico, e seu testemunho ilustra bem a dinâmica de violência, tanto física quanto moral, que é necessária para manter este processo funcionando; nas atitudes de seus proprietários, recorte ilustrativo da sociedade brasileira de então, fica evidente a coisificação, a percepção do escravo como mera mercadoria.
  • Ele é também personagem ativo da luta abolicionista nos Estados Unidos, principalmente, e do esforço que mobilizou a sociedade da época pela libertação dos escravos, e testemunha das contradições existentes no próprio movimento, pois ao mesmo tempo que reconhecia o direito à liberdade do negro, negava-lhe muitas vezes o direito de inserir-se na sociedade em condições de igualdade.

Ao mesmo tempo, Baquaqua vivencia as dinâmicas que formam a sociedade afro-americana:

  • A solidez dos valores que traz de sua terra natal, aos quais permanece ligado durante toda a vida.
  • O espírito pragmático de buscar adaptar-se às novas condições impostas, aprendendo o idioma, assimilando valores (culturais, religiosos) e negociando condições melhores condições de vida.
  • A rebeldia contra a desumanização.
  • O sonho de regressar ás origens.

Bibliografia

AUSTIN, Allan D. African Muslims in antebellum America: transatlantic stories and spiritual struggles. New York: Routledge, 1997

BAQUAQUA. Biografia de Mahommah Gardo Baquaqua; Edição com notas de Allan D. Austin

ELBERT, Sarah. Introduction to American Prejudice Against Color. York: Maple Press, 2002

FOSS e MATHEWS. Facts for Baptist Churches. Atica, NY, 1850.

LOVEJOY, Paul E. Identidade e a miragem da etnicidade: a jornada de Mahhomah Gardo Baquaqua para as Américas. Afro-Asia, n. 27, p. 9-39, 2002

Na Internet

GARNER, Carla W. Allen, William G. (1820- ?). Disponível em: . Acesso em: 19/05/2010.


Verbete: New York Central College. Disponível em: . Acesso em: 18/05/2010

A tradição herodoteana e tucidideana

Introdução

            Evoluindo dos relatos míticos e das epopéias homéricas, com relatos fantásticos que explicam o presente pela ação dos deuses num passado atemporal, a partir do século 6 a.c. os gregos desenvolvem uma atitude crítica em relação ao registro de acontecimentos, para distinguir entre fatos e fantasias.
            Essa revolução no pensamento parece ser fruto do próprio desenvolvimento da polis: a adoção de leis para regular as relações nessa nova sociedade complexa criam um interesse natural pela evolução das dinâmicas políticas; e criam uma ruptura com a tradição, há uma procura por novos princípios de explanação e a dúvida surge como grande estímulo intelectual para as novas descobertas.
            Xenófanes e Hecateu são exemplos dessa evolução; ao relatar fatos do passado registram suas dúvidas sobre os relatos divinos.

            Heródoto (485 – 420 ac)
           
            Declara que seu propósito é preservar a lembrança das grandes e maravilhosas ações de gregos e bárbaros. Mas seu método investigativo, fazendo viagens e buscando testemunhos dos acontecimentos históricos, permitiu fazer muito mais do que salvar fatos do esquecimento: ele dirige a investigação histórica no sentido da exploração do desconhecido e do já esquecido.
            Seu trabalho concentrou-se no registro das guerras entre gregos e persas.

            Características do método de Heródoto:

  • Prioriza o registro sobre a crítica.
  • Diferencia o que ele próprio viu do que ouviu de terceiros.
  • Compara testemunhos e os classifica por grau de confiabilidade.
  • O conceito de história é para ele muito amplo, abarcando não somente os aspectos político-militares, mas também descrições geo-etnográficas, mitológicas e religiosas.

            Críticas:

  • Não estabelece uma linha clara entre o que relata e o que julga verdadeiro.
  • Acredita na intervenção divina nas questões humanas, o que afeta seu estudo das causalidades.

            A despeito de ter sido muito respeitado na Antiguidade e receber de Cícero o título de Pai da História, seu estilo é mais elogiado do que seu rigor investigativo. Tucidides e diversos outros autores o criticam abertamente e chegam a taxa-lo de mentiroso.
            Com o Renascimento e os descobrimentos marítimos os relatos de suas viagens despertaram grande interesse.
            Hoje, com a visão de uma história cada vez mais extrapolítica e abrangente, Heródoto tornou-se ainda mais apreciado.

            Tucidides (cerca 460 – 400 a.c.)

            Concentrava-se na vida política; o restante é secundário. Considerava que o presente é a base para a compreensão do passado, e é o único tempo para o qual há informação confiável disponível. Ao contrário de Heródoto, estabelece para seus estudos um rigoroso recorte temporal e espacial.
            Sua obra analisa as guerras do Peloponeso entre Atenas e Esparta.

            Características do método de Tucídides:

·        Rigor técnico: além da sóbria apresentação dos fatos, descreve de forma crítica as circunstâncias envolvidas, à procura das causas mais profundas de tudo.
·        A causalidade não são as forças do destino, mas as paixões e interesses humanos; não há lugar para os deuses em sua obra.
·        Narração concisa e desapaixonada, em ordem rigorosamente cronológica e destaque para os eventos mais importantes.
·        Enfoque político; destaque para os aspectos militares e negociações políticas, reconstituindo até os discursos políticos dos líderes.
Críticas:
·        Vê a história de forma linear: o passado é prelúdio do presente; Heródoto, ao contrário, confere importância própria ao passado.
·        Ele se responsabiliza pelo que descreve, mas não indica com precisão suas fontes.
É muito respeitado na Antiguidade e seus textos considerados de grande confiabilidade, a despeito de haver muitas críticas a seu estilo como escritor. Tucidides volta a ser importante na 2ª. Metade do século 18, elogiado pela escola alemã que enfatiza a história política.

Simon Bolívar e a Era da Revolução (Jhon Lynch)

Resumo do capítulo:

Iluminismo:
  • Filosofia dos direitos naturais
  • Soberania popular
  • Constituições escritas
  • Separação dos poderes
 Idéias políticas do Iluminismo:
  • Governo: contrato social / direitos naturais
  • Direitos fundamentais: liberdade e igualdade
  • Igreja (dogmas) vista como obstáculo ao progresso
  • Objetivo do governo: proporcionar a máxima felicidade (progresso material) ao máximo de pessoas.
 Falhas:
  • Não reconhece o nacionalismo
  • Atribui pouca importância à estrutura e mudanças sociais
             O Iluminismo não é um instrumento da revolução, e serviu de base teórica para absolutistas e democratas conservadores; em nada colaborou com o movimento de independência colonial.

Movimentos de Independência Hispano-americanos:

            Não se acomodam aos marcos conceituais europeus. Até os pensadores mais liberais reagiram com reservas à Revolução Francesa. Quanto mais radical ela se torna, menos atraente se torna para a elite criolla, que a via como um monstro de democracia e anarquia extremas que poderia destruir a ordem social que conheciam.
            Na América Espanhola a Revolução Francesa produz principalmente repercussões indiretas na esfera militar/estratégica: o isolamento das colônias devido ao bloqueio inglês, e a crise de legitimidade/ poder quando a França invade a Espanha.
Influência da Grã-Bretanha: Pressão por abertura de mercados devido à Revolução Industrial; admiração pelo dinamismo inglês em contraste com o estancamento e debilidade espanhóis.
Influência da Revolução Americana: inspiração republicana e modelo de liberdade; o sistema federalista de governo, no entanto, foi considerado não apropriado para a realidade sul-americana.

Idéias políticas de Bolívar

            Foi influenciado pelo Iluminismo, pelas idéias democráticas e pelo absolutismo esclarecido. Mas fundiu estes valores numa idéia de revolução única, original e adaptada à realidade da América. Não copiou os modelos francês e americano. Principais características:
  • Republicano
  • Conservador em questões sociais
  • Adepto da separação entre Igreja e Estado
  • A ideologia é adaptada ao objetivo maior de conquistar a independência; política pragmática adaptada às circunstâncias políticas.
  • Teoria da autodeterminação nacional: justifica a luta pela independência como prolongamento natural do direito de resistir à opressão (Carta da Jamaica)
             A despeito de ser um democrata e crente fiel nas idéias de igualdade entre os homens, reconhece o despreparo da sociedade americana, com profundas diferenças sócio-economico-raciais, e advoga a criação de um estado forte que conduza a sociedade para uma situação de maior igualdade.
            Sua preocupação em viabilizar este estado faz com que proponha medidas conservadoras como a criação de um senado hereditário  e do Poder Moral, um poder responsável pela educação da população. Na constituição que redigiu para a Bolívia (1826) chegou a propor a criação de uma presidência vitalícia.
            Pressões dos conservadores também o impedem de declarar imediatamente a abolição dos escravos. Inicialmente foi proibido o comércio de escravos; a abolição é declarada apenas em 1826.
            Tentou forçar uma integração dos indígenas à sociedade hispânica, política bem intencionada mas de resultados desastrosos.
            Acreditava no liberalismo econômico, mas as condições do pós-guerra e as pressões de poderosos grupos de interesses impediram a adoção de uma política eficaz. Apoiou-se fortemente na Inglaterra e estimulou o aumento da presença britânica na economia americana.

domingo, 4 de julho de 2010

História da Morte no Ocidente, de Philippe Ariés - Resumo

Áries explica que vai abordar a questão das atitudes diante da morte sob a ótica da sincronia e da diacronia, pois enquanto algumas atitudes permanecem praticamente inalteradas, outras surgem em determinados momentos e são peculiares a determinado período histórico.
O primeiro assunto, a Morte domada, é claramente sincrônico: é a morte vista com naturalidade; dentro deste imaginário a morte é precedida de um aviso dado por signos naturais ou por uma convicção íntima. O autor enumera exemplos que iniciam no século X, passando por dom Quixote, pelos românticos do século XIX, Tolstoi, até 1941, praticamente contemporâneo da produção do livro.
O aviso permite que o moribundo tome tranquilamente suas providências: recolhe-se ao leito, deitado de costas, a cabeça voltada para o oriente.
O cerimonial da partida envolve diversos passos:
• Lamento da vida: evocação nostálgica de seres e coisas amadas
• Perdão dos companheiros
• Pensar em Deus: admitir culpas e homenagear o divino
• Absolvição sacramental
A morte é uma cerimônia pública e organizada; e o mais importante: a simplicidade com que os ritos da morte eram aceitos e cumpridos, sem caráter dramático ou emoção excessiva.
Assim morriam as pessoas durante séculos ou milênios; nessa antiga atitude a morte é ao mesmo tempo familiar e próxima, por um lado, e atenuada e indiferente, por outro.
Arries destaca outro aspecto dessa antiga familiaridade com a morte:
A coexistência dos vivos com os mortos: na Antiguidade (tal como hoje), os mortos eram temidos e mantidos à distância, e a prática de cultos funerários visava impedir que estes voltassem para perturbar os vivos. Mas o culto dos mártires produziu uma visão diferente: os restos mortais são trazidos à cidade para protegê-la; no local é construída uma igreja, e as pessoas querem ter seus corpos enterrados ao lado dos mártires; o cemitério acaba se tornando uma parte da igreja, área pública, ponto de encontros e reunião, até de comércio.

A morte de si mesmo

A partir daqui o autor introduz os aspectos diacrônicos, as pequenas mudanças sutis que darão um sentido dramático e pessoal à familiaridade do homem com a morte.
A familiaridade tradicional com a morte implica uma concepção coletiva da destinação; o homem era profundamente socializado e ligado à natureza e sua ordem natural, respeitada e aceita.
Aries apresenta aqui uma série de fenômenos que vão introduzindo no sistema tradicional uma individualização; analisando representações artísticas do Juízo Final a partir do século XII, que vão passando das tradicionais representações coletivas de ressurreição para uma ênfase no julgamento pessoal; as crenças populares no risco de perder a salvação por cair em tentação no momento da morte e as alusões ao cadáver em decomposição nas artes e na literatura, ele conclui que:

Durante a segunda metade da Idade Média, do século XII ao século XV, deu-se uma aproximação entre três categorias de representações mentais: as da morte, as do reconhecimento por parte de cada indivíduo de sua própria biografia e as do apego apaixonado às coisas e aos seres possuídos durante a vida. A morte tornou-se um lugar em que o homem melhor tomou consciência de si mesmo.

E reforça essa individualização com um último argumento: as sepulturas coletivas nas igrejas vão sendo gradativamente substituídas por túmulos individuais.

A morte do outro

Ariés estuda aqui representações artísticas e literárias dos séculos XVI ao XVIII que apresentam a morte de forma mórbida, cruel e violenta; o sofrimento é acentuado. Para o autor, a morte agora está sendo representada como uma ruptura; ao contrário da antiga familiaridade, a morte reveste-se de uma dor apaixonada.
Essa expressão de dor dos sobreviventes é devida a uma intolerância nova com a separação, com a perda. Essa nova percepção é um dos traços do Romantismo.
O autor chama a atenção para as profundas mudanças na dinâmica familiar, no século XVIII, com novas relações fundadas em sentimento e afeição: o moribundo, que antes comunicava seus sentimentos e afetos formalmente num testamento, passa a fazê-lo oralmente, no leito de morte; o luto formal dos tempos medievais torna-se uma sincera manifestação de dor.
Desde o século XVII vai se fortalecendo um novo ritual: a visita regular ao túmulo do morto, o culto da lembrança; a sociedade cultua seus heróis, seus túmulos tornam-se monumentos.

A morte interdita

Ariés acredita que a atitude diante da morte conheceu mudanças brutais no século XX; uma delas é a tendência de ocultar do moribundo a real gravidade de seu estado; a verdade começa a tornar-se problemática.
O antigo costume de morrer em casa é substituído pela morte no hospital; a assistência familiar que o moribundo tinha é substituída pela equipe hospitalar. O luto é discreto e as formalidades para enterrar o corpo são cumpridas rapidamente. A modernidade está ameaçando até mesmo a visita ao túmulo: agora recorre-se cada vez mais à cremação, como se houvesse uma ânsia por fazer desaparecer e esquecer tudo o que pode restar do corpo.

Ariés, baseando-se no sociólogo inglês Geoffrey Gorer, vê formar-se um tabu em torno da morte; o excessivo apego à vida, tão característico de nossa civilização industrial, parece ter criado um horror à idéia de morrer. A sociedade tradicional reprimia o sexo e encarava a morte naturalmente; agora vemos o oposto: o sexo é apresentado às crianças cada vez mais cedo, mas se oculta delas tudo que diz respeito à morte.
O autor atribui o fenômeno ao hedonismo moderno, uma obsessão por estar sempre feliz, evitando tudo que possa causar tristeza ou aborrecimento; característica particularmente evidente na sociedade norte-americana.

Comentários

Philippe Ariés, em seu original estudo das atitudes diante da morte, demonstra uma evidente simpatia pelo que ele denomina de morte domada, a tradicional naturalidade com que o fenômeno da morte é encarado; ele caracteriza o fenômeno como sincrônico, está presente em todos os recortes temporais estudados, até os dias de hoje.
Tive a oportunidade de acompanhar um caso que ilustra bem a definição de Ariés; era um senhor colombiano, conhecido nos meios esotéricos como Rabolu. Em dado momento de sua vida, em pleno ano 2000, ele demonstrou uma pressa incomum em concluir o projeto de um livro, e revelou a razão: a “advertência” chegara, ele estava prestes a partir; despediu-se dos estudantes e amigos e morreu de uma parada cardíaca.
Ao estudar os fenômenos que vão transformando a visão tradicional, fica evidente que as mudanças estão atreladas a uma tomada de consciência do ser como indivíduo; o centro de gravidade das mentalidades vai se deslocando do coletivo para o indivíduo. Ainda que Áries não estabeleça um nexo causal com a crise feudal e o surgimento da Idade Moderna, o recorte temporal estabelecido (séculos XII ao XV) é coincidente, e a individualização é uma característica marcante das expressões culturais do Renascimento.
Ao observarmos o relato do imaginário medieval sobre a questão da morte fica evidente a preeminência da religiosidade naquele período, e de como ela permeava todas as outras relações e as “amarrava”.
Ao enfocar os elementos causadores de mudanças, Áries dá ênfase a explicações de fundo psicológico (repressão e sublimação) e estabelece relações com fenômenos sociais (novas relações familiares fundadas em sentimento e afeição, no século XVII), artísticos e religiosos. Dinâmicas sociais como a intensa urbanização são usadas para explicar algumas das rápidas transformações que acometem o imaginário do século XX.
O cômputo final parece ser negativo; apesar do desenvolvimento da consciência individual, o autor vê na moderna percepção da morte um apego hedonista à vida; o homem esquece-se da morte para não sofrer, e por isso mesmo sofre horrivelmente sempre que a morte ocorre.
O autor finaliza com um questionamento: nossas culturas tecnizadas terão ficado impossibilitadas de reencontrar a confiança ingênua no Destino?