Nos últimos cinqüenta anos a historiografia caminhou
no sentido de reintegrar o Egito antigo ao continente africano; novos estudos
reforçaram a idéia de desenvolvimento endógeno da civilização egípcia, ao
contrário da idéia tradicional de que os egípcios haviam sido decisivamente
influenciados pelos povos da Ásia Menor; isso é sugerido, entre outros
elementos, pela lenta evolução local das representações simbólicas que vão
levar à escrita hieroglífica; esse processo è anterior ao surgimento da escrita
entre os mesopotâmicos.
Muito se tem escrito sobre a influência que os
egípcios exerceram sobre as civilizações do mundo mediterrânico e da Ásia
Menor, seja no campo cultural ou nas relações políticas e comerciais. Nas últimas
décadas os estudiosos têm lançado um pouco de luz sobre o até agora pouco
conhecido universo das relações entre os antigos egípcios e as civilizações
africanas. Há dois eixos principais de contato: à Oeste, com os povos errantes
do Saara líbio, e no sul, com as civilizações nilóticas da Núbia.
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Pirâmides em Méroe, Núbia |
A região conhecida como Núbia estende-se de Cartum
até Assua e recebeu este nome devido às minas de ouro. A Núbia tem vestígios de
civilizações tão antigas quanto o Egito e que estariam realizando uma troca
contínua de influências; os egípcios vão controlar a região por volta de 1500 aC, mas a Núbia vai
voltar a se tornar independente e lá vai se formar o reino de Cuxe, ou Cushita,
com capital em Napata. No século VIII aC são os cuxitas que vão controlar parte
do Egito, chegando até Elefantina e Tebas.
A partir do século III aC a capital do reino foi
transferida para Meróe, mais ao sul; o reino meroíta chegou a controlar todo o
Egito, e uma dinastia de faraós núbios foi estabelecida pouco antes da invasão
assíria, em 671 aC.
Os reinos núbios são citados na Bíblia e por autores gregos e romanos, como
Diodoro Sículo.
Os meroítas desenvolveram uma escrita própria a
partir dos hieróglifos egípcios, ainda não decifrada; há em Meróe pirâmides e
templos que indicam claramente a influência da arquitetura e da religiosidade
egípcias. O reino de Meróe teria se desenvolvido como um importante eixo de
rotas comerciais da antiguidade, funcionando como importante ponto de encontro
entre o Egito, ao norte, com o reino de Axum, ao sul, os portos do Mar Vermelho
ao leste e os povos subsaarianos a oeste. A atual Etiópia, colonizada
inicialmente pelos árabes, recebe desde cedo influência meroítica e egípcia; o
reino de Axum, formado no 1º. Século dC, vai conquistar a região de Meróe a partir
do século IV. Os portos do mar Vermelho são freqüentados por navios egípcios
com destino ao Punt, normalmente situado na região da atual Somália; expedições
ao Punt em busca de produtos como marfim, incenso, mirra e perfumes são
relatadas nos períodos dos faraós Sahuré (2487 – 2475 aC), Hatshepsut (séc.
XV aC) e Ramsés III (1194 – 1163
aC). Portanto, a cultura egípcia (sua escrita, estilo
arquitetônico, organização política, religiosidade) chega à Núbia e Etiópia
desde remota antiguidade; as relações comerciais vão chegar até o Chifre da
África.
O ponto mais polêmico do alcance da influência
egípcia na África está a oeste do eixo meroítico: rotas comerciais ligando a
região da Nigéria à Núbia são consideradas prováveis desde os tempos dos
ptolomeus e certas a partir da época cristã. Contatos anteriores são ainda
hipotéticos, faltam evidências arqueológicas; peças egípcias encontradas em
regiões remotas da África, como uma estatueta de Osíris encontrada no Congo,
são ainda absolutamente inconclusivas; há ainda muita especulação sobre a
questão da origem dos diferentes centros de metalurgia do ferro na África; em
Méroe, por exemplo, o ferro é trabalhado desde o século IV aC; também é
sugerida uma possível origem nigeriana para o estanho utilizado no antigo Egito.
Teses difusionistas sugerem uma origem egípcia para o apoio de cabeça utilizado
pelos povos do ocidente africano.
É igualmente certo que as regiões onde hoje ficam
Daomé, Gana e Nigéria abrigaram civilizações muito antigas e ainda pouco
estudadas, embora o que seja conhecido até agora sugira um alto grau de
desenvolvimento espontâneo; a chamada cultura Nok, por exemplo, floresceu entre
500 aC
e 300 dC e conheceu a metalurgia de ferro; suas peças de terracota indicam uma
cultura com alto grau de originalidade.
Há ainda o intenso debate acerca das possibilidades
de a religiosidade egípcia haver influenciado as culturas locais: diversas
similaridades entre os cultos, inclusive entre expressões religiosas (Obeah,
por exemplo, viria do egípcio Ob ou Aub) são sugeridas como provas por alguns.
O que pode se afirmar com seguranças é que povos nômades como os blêmios eram
comprovadamente seguidores de Isis, vivendo no oeste da Núbia do século V dC;
ignora-se o que ocorre com esse povo depois; isso basta para que alguns sugiram
uma migração para o oeste. Esse tipo de esforço é recebido com profundo
ceticismo no mundo acadêmico, mas demonstra um intenso esforço cultural de
estabelecer uma ponte entre os cultos do ocidente africano e o Egito; pois o
Egito fascina os povos desde remota antiguidade, e nós podemos assistir um
processo similar ocorrido na época clássica, um esforço em associar deuses
gregos e romanos ao panteão egípcio, e assim se beneficiar de sua respeitável
antiguidade. Esse esforço é hoje particularmente intenso entre algumas linhas
de cultos afro-brasileiros, e uma das associações mais comuns é de Yemanjá como
uma releitura africana de Isis.
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Fenômeno semelhante ocorre, de forma documentada, no
segundo eixo de irradiação egípcia, a partir do Saara e do litoral
mediterrânico, atingindo povos nômades do deserto como os garamantes; os
contatos com os cartagineses, por exemplo, vão produzir um deus púnico
claramente identificado com o deus egípcio Amon; trata-se de Baal Hammon.
É interessante observar que há outros períodos mais
recentes em que o Egito vai atuar novamente como um importante centro de
irradiação de influência, sobretudo em direção à África, e razões pelas quais
isso é tão pouco sabido hoje. Por exemplo, o Egito foi um dos mais importantes
centros de difusão do cristianismo e de desenvolvimento da mística e do
pensamento cristãos nos quatro primeiros séculos de nossa era. Alexandria era
um dos bispados mais influentes do Império Romano, não só pela importância da
cidade, mas devido a homens como Santo Atanásio (295 – 373 dC), um dos maiores
defensores da ortodoxia contra a poderosa heresia ariana; são também do Egito
figuras de peso como Orígenes, Clemente, são Cirilo e tantos outros. É em
terras egípcias que figuras como santo Antão vão dar origem ao extraordinário
movimento do monaquismo cristão, talvez uma das mais identitárias
características da religiosidade cristã.
Vão pesar contra o Egito, no entanto, primeiro o fato
de ser um importante centro de pensamento gnóstico, mais tarde ferozmente
combatido por Roma. E sobretudo a controvérsia em torno da natureza de Cristo
que vai levar ao rompimento com Roma a partir do Concilio de Calcedônia (451
dC); o cisma egípcio fez com que as terras do Nilo desaparecessem do horizonte
cristão; Roma e Constantinopla se apresentam a partir daí como únicos centros
cristãos. Toda a epopéia de disseminação do cristianismo em sua forma
monofisita pelas terras da Núbia e da Etiópia (cristianizada a partir do século
IV pelo bispo Frumêncio) é praticamente ignorada pelo mundo ocidental.
Aqui, novamente, há controvérsias sobre o real
alcance do cristianismo egípcio à oeste: é certo que os reinos núbios de
Makuria e Alodia foram cristianizados; seus vizinhos à oeste, vivendo numa
imensa região em torno do lago Chade eram os zaghawas, onde vai se formar o
Império Kanem (700 – 1376); a difusão do cristianismo entre os zaghawas é
provável, embora não haja evidências concretas. Admitida essa possibilidade,
porém (é certo que efetuavam trocas comerciais entre si), abre-se um curioso
leque de possibilidades: Kanem tinha contato, a oeste, com haussás, iorubas e
nagôs; que poderiam, portanto, ter tido algum tipo de remota notícia do
cristianismo a partir de comerciantes núbios ou zaghawas. Se tal ocorreu, no
entanto, não deixou traços culturais perceptíveis.
Finalmente, o Egito serviu ainda como cabeça de ponte
para a expansão árabe pela África do Norte e Península Ibérica, no século VII. O
Cairo vai se tornar sede do califado fatímida e um dos mais importantes centros
culturais do mundo árabe. A partir do Egito o islamismo vai se expandir pela
Núbia (séc. X) e levar à formação do Império Fungi, no século XVI, levando à
islamização do Sudão e Chade atuais. As areias que cercam o Nilo foram um dos
berços de um original sincretismo entre o monaquismo cristão e as idéias
muçulmanas, o sufismo, que vai se espalhar pelo mundo árabe e estimular um
grande renascimento cultural e místico entre os séculos XIII e XVI.
Definitivamente, África e Egito não podem ser estudados
separadamente; apenas uma perspectiva ampla permite entender toda essa riqueza
de contribuições recíprocas.
Bibliografia
KI-ZERBO, Joseph. História
Geral da África, vol I. Brasília. UNESCO. 2010
MOKTHAR, Gamal. História
Geral da África, vol II. Brasília. UNESCO. 2010
EL FASI, Mohammed. História Geral da África, vol III. Brasília. UNESCO. 2010
NIANE, Djibril Tansir. História Geral da África, vol IV. Brasília. UNESCO. 2010
adorei , eu fiz como tblh de kz na materia de historia ... vou tirar 10
ResponderExcluiregito não estár dentro da africa ,,,,,voçe fala como se egito estivesse fora da africa ...aquele territorio era tudo um territorio só ,,,africa e oriente era tudo uma coisa só ;;;;depois com o canal de suez que foi dividido////
ResponderExcluirMuito bom, porém, gostaria de ver matérias que tratam também de uma civilização egípcia negra.
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