sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

A crise do moderno conceito de História

     Gostaria de compartilhar com os leitores do blog um interessante artigo do professor Artur Vitorino; ele versa sobre a crise de paradigma que vivemos hoje, quando tudo tornou-se história e todos os referenciais são questionados; de como isso afeta o ensino de história e, o que acredito ser o maior merito do artigo, uma alternativa de solução, a "educação patrimonial ético-humanista".

     O link:

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

O Império Romano e sua religiosidade: o exemplo do culto de Isis


Estátua romana de Isis


Sinopse do artigo de Ana Carolina C. Alonso, in NEArco

            Longe de estar focado na expansão territorial, como tradicionalmente se apresenta (a maior expansão ocorreu durante a República), a grande missão do Império foi desenvolver a máquina administrativa, consolidar e manter o território unido.
            Um império tão vasto e com tamanha diversidade cultural exigiu relações de poder que atendessem ao mesmo tempo a elite do império e as necessidades provinciais.
Isso produziu uma flexibilização do que significava “ser romano”; a condição de cidadão, por exemplo, foi progressivamente estendida aos habitantes das províncias, até que se tornou universal (para todos os habitantes livres) em 212 dC. Há igualmente um esforço em integrar símbolos e signos locais à cultura romana. É claro que esse processo tem, além da intencionalidade política e/ou social, um grau expressivo de desdobramentos espontâneos que perfazem o fluxo da história; além disso, a apropriação cultural ocorre de forma bidirecional. Essa percepção alterou significativamente a idéia de romanização; a bidirecionalidade é particularmente perceptível na presença de elementos característicos das províncias nos vestígios materiais da urbe,a despeito da relação assimétrica entre a urbe e a periferia.
            Nesse sentido, uma parte fundamental da formação da identidade romana se dava através da religião; a relação ser humano/divindade é intrinsecamente ligada às relações sociais; termos como religio e supestitio vão ter seus significados seguindo paralelamente com as mudanças sociais de identidade.
            Vários elementos vão atuar como veículo de penetração dos cutlos orientais na sociedade romana: a presença dos escravos, que permanecem fiéis às suas crenças nativas; a permanência das legiões romanas nas províncias por longos períodos e a circulação dos comerciantes, que facilitam o fluxo cultural dentro do império.
            O culto de Isis é distinto de outros cultos praticados em Roma; não é correto considerar as religiões orientais que chegam à Roma como um grupo padronizado com as mesmas características; elas são específicas entre si e diferentes quanto a seus elementos constitutivos.
            Da mesma forma, ao penetrar na urbe e ser ali praticado, o culto passa a se diferenciar substancialmente de seu ancestral oriental.
            Um dos diferenciais entre a religiosidade egípcia e a romana é a noção de templo; para os egípcios o templo é permanentemente sagrado por ser residência de um deus; o povo não adentra todas as dependências do templo, muitas delas são fechadas e de uso exclusivo dos sacerdotes. Rituais constantes são oficiados para conservar os princípios divinos do lugar, e a adoção destes rituais também é uma novidade entre os romanos; os detalhes ritualísticos são descritos por Apuleio e Plutarco, importantes fontes que documentam o entusiasmo que o culto isíaco produziu em Roma.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Influência do Egito antigo na África


 


Nos últimos cinqüenta anos a historiografia caminhou no sentido de reintegrar o Egito antigo ao continente africano; novos estudos reforçaram a idéia de desenvolvimento endógeno da civilização egípcia, ao contrário da idéia tradicional de que os egípcios haviam sido decisivamente influenciados pelos povos da Ásia Menor; isso é sugerido, entre outros elementos, pela lenta evolução local das representações simbólicas que vão levar à escrita hieroglífica; esse processo è anterior ao surgimento da escrita entre os mesopotâmicos.
Muito se tem escrito sobre a influência que os egípcios exerceram sobre as civilizações do mundo mediterrânico e da Ásia Menor, seja no campo cultural ou nas relações políticas e comerciais. Nas últimas décadas os estudiosos têm lançado um pouco de luz sobre o até agora pouco conhecido universo das relações entre os antigos egípcios e as civilizações africanas. Há dois eixos principais de contato: à Oeste, com os povos errantes do Saara líbio, e no sul, com as civilizações nilóticas da Núbia.

Pirâmides em Méroe, Núbia

A região conhecida como Núbia estende-se de Cartum até Assua e recebeu este nome devido às minas de ouro. A Núbia tem vestígios de civilizações tão antigas quanto o Egito e que estariam realizando uma troca contínua de influências; os egípcios vão controlar a região por volta de 1500 aC, mas a Núbia vai voltar a se tornar independente e lá vai se formar o reino de Cuxe, ou Cushita, com capital em Napata. No século VIII aC são os cuxitas que vão controlar parte do Egito, chegando até Elefantina e Tebas.
A partir do século III aC a capital do reino foi transferida para Meróe, mais ao sul; o reino meroíta chegou a controlar todo o Egito, e uma dinastia de faraós núbios foi estabelecida pouco antes da invasão assíria, em 671 aC. Os reinos núbios são citados na Bíblia e por autores gregos e romanos, como Diodoro Sículo.
Os meroítas desenvolveram uma escrita própria a partir dos hieróglifos egípcios, ainda não decifrada; há em Meróe pirâmides e templos que indicam claramente a influência da arquitetura e da religiosidade egípcias. O reino de Meróe teria se desenvolvido como um importante eixo de rotas comerciais da antiguidade, funcionando como importante ponto de encontro entre o Egito, ao norte, com o reino de Axum, ao sul, os portos do Mar Vermelho ao leste e os povos subsaarianos a oeste. A atual Etiópia, colonizada inicialmente pelos árabes, recebe desde cedo influência meroítica e egípcia; o reino de Axum, formado no 1º. Século dC, vai conquistar a região de Meróe a partir do século IV. Os portos do mar Vermelho são freqüentados por navios egípcios com destino ao Punt, normalmente situado na região da atual Somália; expedições ao Punt em busca de produtos como marfim, incenso, mirra e perfumes são relatadas nos períodos dos faraós Sahuré (2487 – 2475 aC), Hatshepsut (séc. XV aC) e Ramsés III (1194 – 1163 aC). Portanto, a cultura egípcia (sua escrita, estilo arquitetônico, organização política, religiosidade) chega à Núbia e Etiópia desde remota antiguidade; as relações comerciais vão chegar até o Chifre da África.
O ponto mais polêmico do alcance da influência egípcia na África está a oeste do eixo meroítico: rotas comerciais ligando a região da Nigéria à Núbia são consideradas prováveis desde os tempos dos ptolomeus e certas a partir da época cristã. Contatos anteriores são ainda hipotéticos, faltam evidências arqueológicas; peças egípcias encontradas em regiões remotas da África, como uma estatueta de Osíris encontrada no Congo, são ainda absolutamente inconclusivas; há ainda muita especulação sobre a questão da origem dos diferentes centros de metalurgia do ferro na África; em Méroe, por exemplo, o ferro é trabalhado desde o século IV aC; também é sugerida uma possível origem nigeriana para o estanho utilizado no antigo Egito. Teses difusionistas sugerem uma origem egípcia para o apoio de cabeça utilizado pelos povos do ocidente africano.
É igualmente certo que as regiões onde hoje ficam Daomé, Gana e Nigéria abrigaram civilizações muito antigas e ainda pouco estudadas, embora o que seja conhecido até agora sugira um alto grau de desenvolvimento espontâneo; a chamada cultura Nok, por exemplo, floresceu entre 500 aC e 300 dC e conheceu a metalurgia de ferro; suas peças de terracota indicam uma cultura com alto grau de originalidade.
Há ainda o intenso debate acerca das possibilidades de a religiosidade egípcia haver influenciado as culturas locais: diversas similaridades entre os cultos, inclusive entre expressões religiosas (Obeah, por exemplo, viria do egípcio Ob ou Aub) são sugeridas como provas por alguns. O que pode se afirmar com seguranças é que povos nômades como os blêmios eram comprovadamente seguidores de Isis, vivendo no oeste da Núbia do século V dC; ignora-se o que ocorre com esse povo depois; isso basta para que alguns sugiram uma migração para o oeste. Esse tipo de esforço é recebido com profundo ceticismo no mundo acadêmico, mas demonstra um intenso esforço cultural de estabelecer uma ponte entre os cultos do ocidente africano e o Egito; pois o Egito fascina os povos desde remota antiguidade, e nós podemos assistir um processo similar ocorrido na época clássica, um esforço em associar deuses gregos e romanos ao panteão egípcio, e assim se beneficiar de sua respeitável antiguidade. Esse esforço é hoje particularmente intenso entre algumas linhas de cultos afro-brasileiros, e uma das associações mais comuns é de Yemanjá como uma releitura africana de Isis.


 Fenômeno semelhante ocorre, de forma documentada, no segundo eixo de irradiação egípcia, a partir do Saara e do litoral mediterrânico, atingindo povos nômades do deserto como os garamantes; os contatos com os cartagineses, por exemplo, vão produzir um deus púnico claramente identificado com o deus egípcio Amon; trata-se de Baal Hammon.

É interessante observar que há outros períodos mais recentes em que o Egito vai atuar novamente como um importante centro de irradiação de influência, sobretudo em direção à África, e razões pelas quais isso é tão pouco sabido hoje. Por exemplo, o Egito foi um dos mais importantes centros de difusão do cristianismo e de desenvolvimento da mística e do pensamento cristãos nos quatro primeiros séculos de nossa era. Alexandria era um dos bispados mais influentes do Império Romano, não só pela importância da cidade, mas devido a homens como Santo Atanásio (295 – 373 dC), um dos maiores defensores da ortodoxia contra a poderosa heresia ariana; são também do Egito figuras de peso como Orígenes, Clemente, são Cirilo e tantos outros. É em terras egípcias que figuras como santo Antão vão dar origem ao extraordinário movimento do monaquismo cristão, talvez uma das mais identitárias características da religiosidade cristã.
Vão pesar contra o Egito, no entanto, primeiro o fato de ser um importante centro de pensamento gnóstico, mais tarde ferozmente combatido por Roma. E sobretudo a controvérsia em torno da natureza de Cristo que vai levar ao rompimento com Roma a partir do Concilio de Calcedônia (451 dC); o cisma egípcio fez com que as terras do Nilo desaparecessem do horizonte cristão; Roma e Constantinopla se apresentam a partir daí como únicos centros cristãos. Toda a epopéia de disseminação do cristianismo em sua forma monofisita pelas terras da Núbia e da Etiópia (cristianizada a partir do século IV pelo bispo Frumêncio) é praticamente ignorada pelo mundo ocidental.
Aqui, novamente, há controvérsias sobre o real alcance do cristianismo egípcio à oeste: é certo que os reinos núbios de Makuria e Alodia foram cristianizados; seus vizinhos à oeste, vivendo numa imensa região em torno do lago Chade eram os zaghawas, onde vai se formar o Império Kanem (700 – 1376); a difusão do cristianismo entre os zaghawas é provável, embora não haja evidências concretas. Admitida essa possibilidade, porém (é certo que efetuavam trocas comerciais entre si), abre-se um curioso leque de possibilidades: Kanem tinha contato, a oeste, com haussás, iorubas e nagôs; que poderiam, portanto, ter tido algum tipo de remota notícia do cristianismo a partir de comerciantes núbios ou zaghawas. Se tal ocorreu, no entanto, não deixou traços culturais perceptíveis.
Finalmente, o Egito serviu ainda como cabeça de ponte para a expansão árabe pela África do Norte e Península Ibérica, no século VII. O Cairo vai se tornar sede do califado fatímida e um dos mais importantes centros culturais do mundo árabe. A partir do Egito o islamismo vai se expandir pela Núbia (séc. X) e levar à formação do Império Fungi, no século XVI, levando à islamização do Sudão e Chade atuais. As areias que cercam o Nilo foram um dos berços de um original sincretismo entre o monaquismo cristão e as idéias muçulmanas, o sufismo, que vai se espalhar pelo mundo árabe e estimular um grande renascimento cultural e místico entre os séculos XIII e XVI.
Definitivamente, África e Egito não podem ser estudados separadamente; apenas uma perspectiva ampla permite entender toda essa riqueza de contribuições recíprocas.

Bibliografia

KI-ZERBO, Joseph. História Geral da África, vol I. Brasília. UNESCO. 2010
MOKTHAR, Gamal. História Geral da África, vol II. Brasília. UNESCO. 2010
EL FASI, Mohammed. História Geral da África, vol III. Brasília. UNESCO. 2010
NIANE, Djibril Tansir. História Geral da África, vol IV. Brasília. UNESCO. 2010