quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Análise da representação da mulher no mundo romano a partir de Petrônio


            O propósito deste trabalho é analisar a questão da representação do gênero feminino na antiguidade romana a partir de um trecho do Satyricon de Petrônio, a anedota sobre “a dama de Éfeso”.   Subsidiariamente é possível também tecer considerações sobre relações de poder e extratificação social no mesmo período.

1- Abordagem Teórica
            O estudo de uma obra literária como fonte de informação sobre o imaginário e a realidade social de um determinado momento histórico partiu das considerações feitas nos trabalhos de Glaydson e Garraffoni:
“O texto literário constitui, portanto, uma forma de registro histórico, diferindo deste propriamente dito pela sua não intenção de assim se constituir.(...) Pensar a Arte de Amar e o Satyricon como veículos de informações históricas de seus contextos implica, necessariamente, em uma concepção destas obras como produtos de um imaginário social a ser decodificado, interpretado, uma vez que lida, simultaneamente, com questões como liberdade e poder (...); nesse sentido o implícito do discurso está carregado de múltiplos pensamentos encobertos”. (SILVA, Glaydson, p. 25)
            É necessário recorrer à interdisciplinaridade para uma correta análise do material; em Garrafoni/Furnari vemos uma descrição do esforço para reconstituir a estrutura lingüística do Satyricon a partir de uma análise filológica, onde concluem:
“Ao estudar o episódio da Dama de Éfeso, tomaremos como pressuposto, portanto, que a literatura é uma linguagem e que, para compreendê-la, torna-se necessário que recorramos às alegorias, seus significantes e significados. Por meio do questionamento do texto e da análise das estruturas e vocabulário, pretendemos estabelecer um diálogo com os personagens para explicitar os sentidos que produzem.” ( GARRAFONI/FURNARI, 94)
            O ferramental da história a partir da interdisciplinaridade permite ao historiador entender que um texto literário, como a sátira, possui características discursivas específicas, permeadas pelos interesses e visões de mundo daqueles que a criaram (GARRAFONI 2009, p. 94). Foi exatamente a falta de leitura crítica dos textos clássicos (como Petrônio, Apuleio e Juvenal) que produziu a interpretação vigente no final do século XIX, da população romana como uma massa amorfa, sem vontade própria, fútil, que não gosta de trabalhar e gasta todas suas energias na busca desenfreada do prazer. Ao passo que uma leitura crítica permite o acesso às camadas sociais e/ou identitárias menos favorecidas do mundo romano e sua ação como sujeitos de sua história em dinâmicas de resistência, acomodação e negociação. O estudo filológico a partir dos textos em latim revelou, ainda, que no Satyricon Petrônio dá voz aos diferentes segmentos sociais retratados em sua obra, reproduzindo sua linguagem social com todos valores orais e populares, com toda vivacidade e crueza que lhe são peculiares, permitindo o contato com todo o universo simbólico presente nas expressões cotidianas; como ressalta Paulo Leminski, “essa crueza da linguagem de Petrônio sempre foi maquilada nas traduções para as línguas modernas, onde giros eufemísticos, ditados pelo moralismo, substituem o verdadeiro nome das coisas”. (SILVA, Glaydson, p. 106-107)

2- A Dama de Éfeso 
            A anedota surge durante uma viagem de navio empreendida pelos personagens principais do livro. Encólpio, o narrador das aventuras, descreve a anedota como um esforço de Eumolpo em destacar-se na conversação através de ditos espirituais, durante as quais “(...) começou a dizer mil bobagens sobre a leviandade das mulheres, sua facilidade em apaixonar-se, sua presteza em esquecer amantes.”(PETRONIO, CX, p. 150). Eumolpo, por sua vez, enuncia sua tese e a atualidade do assunto, declarando:
“Não há uma única mulher, por mais fiel que seja, que uma nova paixão não possa levar aos maiores excessos. Não é preciso, para provar o que eu digo, recorrer às antigas tragédias, citar nomes famosos nos séculos passados. Para isso, contar-vos-ei um episódio ocorrido em nossos dias.” (idem)
            Fazendo menção a um episódio atual, o autor dota a narrativa de maior capacidade persuasiva (LEÃO, p. 80).
            Garrafoni e Funari chamam a atenção para a construção discursiva do autor; eles chamam a atenção inicialmente para as expressões que ele emprega ao referir-se à dama: no início da narrativa ela é descrita como matrona (senhora) com pudicitia (grande reputação de castidade) a ponto de ser modelo para outras feminae (mulheres); ao expressar enorme dor pela morte do marido é definida como singularis exempli femina (mulher de exemplo singular). Ela está, nesse primeiro momento, encarnando o imaginário da virtude feminina herdado do pensamento tradicional romano, e enquanto isso o autor se refere a ela como matrona; o termo deriva de mater (mãe), indicativo do principal papel que lhe cabe na sociedade romana (SILVA, p. 896). No momento seguinte, em que chama a atenção do soldado romano, ela é agora a pulcherrima mulier (bela mulher); a expressão mulier era utIlizada para descrever a mulher de baixa extração, o extremo oposto da elevada matrona (FURNARI, GARRAFONI, p. 113). Nessa primeira visão a imagem da mulher age intensamente sobre a imaginação do soldado, numa interessante associação da imagem feminina aos mistérios do mundo subterrâneo (monstro infernisque imaginibus). Na percepção seguinte o soldado entende a cena a partir do imaginário da época: trata-se de uma mulher consumida de desejo pelo marido falecido. Ela está agora sendo descrita com um termo médio e de amplo alcance (mulher, feminam), nem tão alto como matrona ou tão baixo como mulier. Descrita como feminam ela é imediatamente associada à sua característica central, o desejo (desiderium). Glaydson também apóia essa leitura: a despeito das especificidades de sua posição social, todas mulheres possuem uma natureza comum, centrada no desejo (SILVA, Glaydson, p. 108).

Relações entre as teses de Walter Benjamin e a obra de Josep Fontana, identificando em que aspectos as teses inspiraram as idéias centrais e a estrutura do livro História: análise do passado e projeto social.


       Walter Benjamin revela-se um crítico feroz do historicismo; para ele a fixação por conhecer o passado como de fato ele foi não possui nenhuma relação com a articulação histórica (VI). O autor a história como um intenso processo de construção do presente sobre o passado (XIV); esse passado carregado deagorastem um imenso potencial que pode ser canalizado de duas maneiras: na primeira a História funciona como discurso de defesa do status quo, como sua justificação; Benjamin chama isso de empatia do historiador pelo vencedor (“a empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores”; VII); isso produz umainércia do coração” (VII) que vai levar ao conformismo da social-democracia, ao encantamento com o desenvolvimento da técnica e ao culto moral do trabalho (XI); em resumo, à imobilização (XVII). O segundo uso da História é contemplado pelo materialismo histórico: trata-se de fazer o sujeito histórico despertar de sua letargia, de dar-se conta da exploração das classes dominantes (VI), da destruição cultural dos derrotados (VII), da exploração do proletariado disfarçada na moralização do trabalho (XI); resgatar o passado oprimido é uma oportunidade de luta revolucionária (XVII), de transcender o curso tradicional da história. Na sua metáfora, Benjamin define o primeiro uso como a história numa arena comandada pela classe dominante; na segunda ela é o salto de um tigre sob o céu livre, o salto dialético da revolução (XIV).
            Essa concepção de história norteia todo o trabalho de Josep Fontana, a começar pelo título de sua obra, História: análise do passado e projeto social; como define Vitor Biasoli no prefácio da obra, “para Josep Fontana, falar do passado de uma sociedade é posicionar-se em relação ao tempo presente, suas mazelas e grandezas. É definir-se em relação às lutas e aos projetos sociais em confronto na sociedade em que vive o historiador”. Para Fontana o foco da obra não é a historiografia, mas as idéias sociais subjacentes, o projeto social em que o historiador inscreve a sua tarefa (FONTANA, p. 9). Dentro desse escopo a obra é construída em torno do ataque aos modelos de concepção histórica que dão sustentação à sociedade capitalista, por um lado, e à exaltação ao materialismo histórico como modelo que estimula a crítica e a concepção de uma sociedade alternativa baseada em idéias socialistas.
            Ainda sobre essa dualidade, Benjamin acredita que o historicismo é desprovido de armação teórica; não passa de uma massa de fatos reunida para preencher o tempo homogêneo e vazio (XVII) e com pretensão de constituir uma história universal. É essencialmente acrítico. Fontana chama isso de genealogia do presente: a seleção e ordenamento dos fatos do passado de forma que conduzam em sequência até o presente, com o fim (consciente ou não) de justificá-lo, produzindo uma visão de que os acontecimentos se encadeiam e dão como resultado “natural” a realidade social em que vivemos; estabelecida esta ordem, todas ideias que se opuseram a ela são apresentadas como regressivas, e todas alternativas como utópicas. O materialismo histórico, em oposição, é dotado de método, e como tal dotado de um principio construtivo em sua base (XVII), o que lhe permite confrontar os objetos históricos estruturalmente e extrair as oportunidades da luta revolucionária, da transcendência; dai ele afirmar que a compreensão histórica gerada por esse método produz um fruto nutritivo. Fontana compreende o materialismo histórico da mesma maneira, como uma ferramenta para a práxis, para a construção de um novo projeto social a partir da compreensão crítica da realidade presente (idem, p. 11); estão ligados de forma indissolúvel história, economia política e projeto social. Para ele é uma quimera essa pretensão acadêmica de investigar desapaixonadamente o passado: toda leitura histórica está a serviço de um projeto social e contagiada por interesses. Benjamin, a esse respeito, fala da construção da história saturada de “agoras” (XIV); a primeira parte da obra de Fontana é uma longa exposição de como os historiadores através dos tempos cumprem basicamente uma função social de legitimar a ordem estabelecida, e de como a partir da Ilustração a História vai se converter em instrumento fundamental de análise política e base ideológica (idem, p. 77).
            Fontana procura mostrar que os historiadores desempenham papel importante no processo de desenvolvimento do capitalismo: a escola escocesa, por exemplo, ao produzir uma visão histórica como linha evolutiva que vai da barbárie ao capitalismo, apresentando a proteção à propriedade privada, a divisão social do trabalho e o governo civil como pré-condições para o crescimento econômico. Dentro dessa dinâmica, as rupturas, como as ideias de Rousseau e Mably de divisão igualitária da propriedade, ou as primeiras concepções de luta de classes, vão ser combatidas por uma legião de historiadores do inicio do século XIX; a Revolução Francesa vai ser submetida a um intenso processo de interpretação para ressaltar seu caráter burguês e liberal. Seguindo essa linha, Fontana vai destacar o caráter conservador das leituras históricas a partir da economia clássica e das incipientes ciências sociais. O processo de reação repete-se com a Revolução Russa: a reação contra o materialismo histórico vai utilizar-se de conceitos como a impossibilidade de extrair leis históricas (crítica à racionalidade do processo histórico). Estes capítulos iniciais, onde Fontana situa impiedosamente os historiadores em meio aos dilemas sociais de seu tempo, atende à perfeição a concepção benjaminiana de contemplar à distância os valores culturais da classe dominante, e sua tarefa de “escovar a história a contrapelo” (VII).
            Os capitulos seguintes, onde Fontana faz a crítica dos annales e das novas concepções de história, pode ser resumido nas ideias de Benjamin de falta de armação teórica e método (“ausência de idéias”, na ácida definição de Fontana, p. 213) e de conformismo e ingenuidade conceitual (o instrumental de outras ciências vai produzir concepções históricas ingênuas como a ideia de  “naturalidade” da exploração social).
            A crítica feroz à social-democracia está presente em ambos autores; Benjamin a considera o principal corruptor da classe operária alemã (XI); para ambos ela aparece como um dos fatores que levará à ascensão do nazismo.
            Finalmente, o apelo militante que Fontana dirige aos historiadores no epílogo (“Está nas nossas mãos voltar a começar o mundo de novo”) no sentido de cerrarem fileiras numa luta contra as ideias atrasadas do passado e no combate à mundialização está impregnado do messianismo das ideias de Walter Benjamin, quando fala da vitória sobre o Anticristo e no despertar das centelhas da esperança (VI). Essa fé militante transparece na biografia do primeiro (que morreu defendendo suas ideias) e no depoimento com que Fontana encerra o livro:

                        “O meu oficio preencheu-me estes anos e deu sentido à minha vida. Porque não é só um trabalho (…), como também o meu modo de estar neste mundo e de lutar com as armas do meu ofício contra todas as coisas que impedem que se realize uma sociedade onde haja (…) a maior igualdade possível dentro da maior liberdade possível”.

            BIBLIOGRAFIA

            BENJAMIN, Walter.Teses sobre filosofia da História. Texto fornecido pelo professor.

            FONTANA, Josep. História: análise do passado e projeto social. Bauru, SP: EDUSC, 1998.

            FUNARI, Pedro Paulo. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DAS "TESES SOBRE FILOSOFIA DA HISTÓRIA", DE WALTER BENJAMIN. Disponivel em: http://www.unicamp.br/cemarx/criticamarxista/3_PPFunari.pdf