O propósito deste trabalho é analisar a questão da representação do gênero feminino na antiguidade romana a partir de um trecho do Satyricon de Petrônio, a anedota sobre “a dama de Éfeso”. Subsidiariamente é possível também tecer considerações sobre relações de poder e extratificação social no mesmo período.
1- Abordagem
Teórica
O estudo de uma obra literária como
fonte de informação sobre o imaginário e a realidade social de um determinado
momento histórico partiu das considerações feitas nos trabalhos de Glaydson e
Garraffoni:
“O texto literário constitui, portanto, uma forma de
registro histórico, diferindo deste propriamente dito pela sua não intenção de
assim se constituir.(...) Pensar a Arte de Amar e o Satyricon como veículos de
informações históricas de seus contextos implica, necessariamente, em uma
concepção destas obras como produtos de um imaginário social a ser
decodificado, interpretado, uma vez que lida, simultaneamente, com questões
como liberdade e poder (...); nesse sentido o implícito do discurso está
carregado de múltiplos pensamentos encobertos”. (SILVA, Glaydson, p. 25)
É necessário recorrer à
interdisciplinaridade para uma correta análise do material; em Garrafoni/Furnari
vemos uma descrição do esforço para reconstituir a estrutura lingüística do
Satyricon a partir de uma análise filológica, onde concluem:
“Ao estudar o episódio da Dama de Éfeso, tomaremos como
pressuposto, portanto, que a literatura é uma linguagem e que, para
compreendê-la, torna-se necessário que recorramos às alegorias, seus
significantes e significados. Por meio do questionamento do texto e da análise
das estruturas e vocabulário, pretendemos estabelecer um diálogo com os
personagens para explicitar os sentidos que produzem.” ( GARRAFONI/FURNARI, 94)
O
ferramental da história a partir da interdisciplinaridade permite ao
historiador entender que um texto literário, como a sátira, possui
características discursivas específicas, permeadas pelos interesses e visões de
mundo daqueles que a criaram (GARRAFONI 2009, p. 94). Foi exatamente a falta de
leitura crítica dos textos clássicos (como Petrônio, Apuleio e Juvenal) que
produziu a interpretação vigente no final do século XIX, da população romana
como uma massa amorfa, sem vontade própria, fútil, que não gosta de trabalhar e
gasta todas suas energias na busca desenfreada do prazer. Ao passo que uma
leitura crítica permite o acesso às camadas sociais e/ou identitárias menos
favorecidas do mundo romano e sua ação como sujeitos de sua história em
dinâmicas de resistência, acomodação e negociação. O estudo filológico a partir
dos textos em latim revelou, ainda, que no Satyricon Petrônio dá voz aos
diferentes segmentos sociais retratados em sua obra, reproduzindo sua linguagem
social com todos valores orais e populares, com toda vivacidade e crueza que
lhe são peculiares, permitindo o contato com todo o universo simbólico presente
nas expressões cotidianas; como ressalta Paulo Leminski, “essa crueza da
linguagem de Petrônio sempre foi maquilada nas traduções para as línguas
modernas, onde giros eufemísticos, ditados pelo moralismo, substituem o
verdadeiro nome das coisas”. (SILVA, Glaydson, p. 106-107)
2- A Dama de
Éfeso
A anedota surge durante uma viagem
de navio empreendida pelos personagens principais do livro. Encólpio, o
narrador das aventuras, descreve a anedota como um esforço de Eumolpo em
destacar-se na conversação através de ditos espirituais, durante as quais “(...)
começou a dizer mil bobagens sobre a leviandade das mulheres, sua facilidade em
apaixonar-se, sua presteza em esquecer amantes.”(PETRONIO, CX, p. 150). Eumolpo,
por sua vez, enuncia sua tese e a atualidade do assunto, declarando:
“Não há uma única mulher, por mais fiel que seja, que uma
nova paixão não possa levar aos maiores excessos. Não é preciso, para provar o
que eu digo, recorrer às antigas tragédias, citar nomes famosos nos séculos
passados. Para isso, contar-vos-ei um episódio ocorrido em nossos dias.” (idem)
Fazendo menção a um episódio atual,
o autor dota a narrativa de maior capacidade persuasiva (LEÃO, p. 80).
Garrafoni e Funari chamam a atenção
para a construção discursiva do autor; eles chamam a atenção inicialmente para
as expressões que ele emprega ao referir-se à dama: no início da narrativa ela
é descrita como matrona (senhora) com pudicitia (grande reputação
de castidade) a ponto de ser modelo para outras feminae (mulheres); ao
expressar enorme dor pela morte do marido é definida como singularis exempli
femina (mulher de exemplo singular). Ela está, nesse primeiro momento,
encarnando o imaginário da virtude feminina herdado do pensamento tradicional
romano, e enquanto isso o autor se refere a ela como matrona; o termo deriva de
mater (mãe), indicativo do principal papel que lhe cabe na sociedade romana
(SILVA, p. 896). No momento seguinte, em que chama a atenção do soldado romano,
ela é agora a pulcherrima mulier (bela mulher); a expressão mulier
era utIlizada para descrever a mulher de baixa extração, o extremo oposto da
elevada matrona (FURNARI, GARRAFONI, p. 113). Nessa primeira visão a imagem da
mulher age intensamente sobre a imaginação do soldado, numa interessante
associação da imagem feminina aos mistérios do mundo subterrâneo (monstro
infernisque imaginibus). Na percepção seguinte o soldado entende a cena a
partir do imaginário da época: trata-se de uma mulher consumida de desejo pelo
marido falecido. Ela está agora sendo descrita com um termo médio e de amplo
alcance (mulher, feminam), nem tão alto como matrona ou tão baixo como mulier.
Descrita como feminam ela é imediatamente associada à sua característica
central, o desejo (desiderium). Glaydson também apóia essa leitura: a
despeito das especificidades de sua posição social, todas mulheres possuem uma
natureza comum, centrada no desejo (SILVA, Glaydson, p. 108).
Quando o soldado lhe oferece comida,
ela é agora uma muliercula (uma mera mulher); assediada, ela é descrita
como abstinentia sicca (seca pela abstinência); a idéia implícita é de
que a nobre mulher vai se deixando cegar pelo desejo até chegar à suprema
desonra e degradação de copular com um homem desconhecido encima do túmulo do
marido recém falecido. Ao mesmo tempo que isso ocorre a nobre família da
matrona e toda sociedade crêem que ela permanece velando o falecido e sofrendo
as agruras do luto, numa ácida referência à fachada de moralidade atribuída às
matronas da alta sociedade.
Nesse momento da narrativa a Dama de
Éfeso cedeu desonrosamente à investida galante do soldado romano, até aqui o
herói da anedota, cheio de iniciativa e no controle da situação. Mas
subitamente os papéis se invertem: ocupado com sua aventura amorosa, o soldado
descuida suas obrigações, e o corpo de um dos sentenciados é recuperado por sua
família. Antevendo um castigo mortal, ele submete sua situação à dama de forma
servil e subalterna. Toda iniciativa agora se transfere à dama (descrita no
episódio ainda como mulier), que é agora misericordiosa e pudica (non
minus misericors quam pudica) e ao mesmo tempo uma inteligente planejadora
(prudentíssima femina) ao conceber um artifício para salvar a vida do
soldado: ela manda (iubet) que o corpo do marido fosse colocado na cruz.
Ao mesmo tempo em que salva a vida do soldado, a ação da dama reduz a condição
do falecido, de um homem de importante posição social a de substituto de um
condenado à cruz (punição enormemente degradante).
Em suas conclusões, os autores
ressaltam diversos elementos extraídos a partir da anedota: as regras do
domínio patricarcal são burladas pelas artimanhas da mulher; ela logra sair do
papel social que lhe é reservado, como figura submissa e casta, e revela-se
dominadora e senhora da situação (FUNARI, GARRAFONI, p. 116).
Delfim Leão chama a atenção para dois
detalhes: primeiro, ao situar o episódio em Éfeso, o autor está nos dando
informações importantes: trata-se de um importante porto marítimo, um grande
entreposto comercial por onde circulam comerciantes e navegantes vindos de
diferentes regiões do Império; a contestação dos valores de uma sociedade
patriarcal tradicional aparece no contexto dos intensos contatos culturais entre
Ásia e Europa propiciados pela universalização do controle romano no século I d.C.,
período onde normalmente se situa a produção da obra. Segundo, ao analisar como
reagem os ouvintes à narrativa, ele compõe uma amostragem de valores: os
marinheiros do navio riem a valer, claramente identificados com o soldado e
atraídos pela fantasia de corromper uma matrona; Trifena, a única mulher
presente, fica profundamente ruborizada (sugerindo, entre outras
possibilidades, uma consciência pouco tranqüila com o relato); Licas,
proprietário do barco e homem de posses, por sua vez identifica-se com o marido
morto e com os valores patriarcais desonrados pela dama (LEÃO, p. 80).
A mulher vista no Satyricon é dotada
das contradições inerentes à sociedade romana nesse período: é uma sociedade
que valoriza o ideário moral de uma sociedade patriarcal, que reserva à mulher
o papel secundário e passivo, e suas obrigações com relação à fidelidade e
castidade; como Glaydson lembra muito bem, outro trecho do mesmo Satyricon
atribui catástrofes naturais e a ira dos deuses à inobservância por parte das
mulheres das regras da velha moral romana (SILVA, Glaydson , p. 109). Ainda
seguindo o ideário patriarcal, o monopólio da responsabilidade é masculino; os
juízos de valor sobre a mulher via de regra são todos negativos: ela não é
digna de confiança, não é sincera; não tendo controle sobre seu desejo, não
pode ser fiel, e apenas um tolo pode esperar isso dela (idem, p. 111); e a
lista prossegue: falsas, interesseiras, não confiáveis.
Ao mesmo tempo, curiosamente, as
mulheres do Satyricon são em sua maioria representadas como pessoas livres,
independentes, cheias de iniciativa e profundamente dominadoras, controlando
inclusive a vida dos homens (idem, p. 109). A mulher tem autonomia para se
deslocar livremente pela cidade e algumas delas, como a sacerdotisa Quartila,
tem enorme poder e status social. Outro elemento destacado pelo estudioso é a
capacidade de mobilidade social demonstrada por algumas delas: Fortunata, por
exemplo, a esposa de Trimalchio, o homem mais rico de toda narrativa, é
definida como “pobre de origem” e em seguida como “a sagaz administradora que
cuida detalhadamente de sua fortuna” (idem, p. 115).
“Ainda que dadas a ler pelo “olhar do inimigo”, dos
homens, as mulheres descritas por Ovídio e Petrônio são representativas das
mudanças nas condições femininas neste período. Ovídio e Petrônio, juntamente
com outros autores da época, contribuem para a leitura de uma certa libertação das
mulheres dos antigos costumes romanos, na medida em que dão a conhecer mulheres
que querem ter o direito ao desejo, ao prazer, rompendo com toda aura de
valores castos que a tradição romana lhes tinha legado” (idem, p. 140).
3- A serva
Há uma segunda personagem feminina
na anedota, a serva da viúva (ancilla); definida como “criada fiel”, acompanha
sua ama em seu retiro de luto e a serve; o ato de chorar junto com ela indica
uma familiaridade que vai além da mera relação servo-senhor. Sua passividade inicial
modifica-se completamente quando o soldado entra em cena; ela é a primeira a
aceitar seus oferecimentos de comida e vinho, e ao dar-se conta do fracasso do
soldado em convencer sua ama a comer, toma a iniciativa e vence sua resistência
com um discurso bastante articulado e persuasivo. Mais tarde, diante agora do
flerte do soldado, é a serva que a incentiva a ceder: “Podereis resistir a
tão doces inclinações e neste triste lugar consumir vossos belos anos ?”
(PETRONIO, CXII, p. 153).
Nas atitudes da serva vemos
novamente as características clássicas da mulher petroniana, de independência e
controle; o que chama a atenção é que estas características estão presentes a
despeito de sua condição de serva (escrava). Isso nos remete a um estudo de
Fabio Faversani sobre a compreensão da dinâmica social a partir de relações
diretas de poder; ele lembra a crítica de Finley à divisão tradicionalmente
aceita da sociedade romana, associando extratos jurídicos às camadas sociais.
Para o estudioso há tamanha inter-relação entre pobres e ricos (e grande
possibilidade de mobilidade social) que ele considera mais válido o sistema de
Alfody, que propõe uma divisão verticalizada opondo setores rurais e urbanos.
No espaço urbano estariam lado a lado escravos, libertos, pobres livres e (a
partir das relações de patronagem) os ricos (FAVERSANI, p. 44). Para ele a
patronagem é a chave para compreender as dinâmicas sociais da sociedade romana,
sobretudo quanto à mobilidade: o escravo, ao ser libertado, torna-se cliente de
seu antigo patrão; a partir dessa relação pessoal de fidelidade e reciprocidade
de favores, o antigo escravo constrói uma rede de relações sociais que lhe
permite ascender socialmente (idem, p. 58). Os diálogos da serva com sua ama
seriam ainda um exemplo das relações diretas de poder estabelecidas entre
senhor e escravo; longe de serem uma “massa livremente manipulada, sem volição
ou alternativas de afirmação, eles estabelecem uma dinâmica ativa que concilia
resistência, cooperação e negociação como estratégias (de sobrevivência e
afirmação) para atingir seus objetivos (idem, p. 51-56). As relações sociais
são menos estanques do que se pensava, e dotadas de grande fluidez de idéias e
percepções (GARRAFFONI, 2009, p.102).
4-
Conclusão
Lourdes Conde Feitosa define de
maneira muito abrangente a origem e o alcance dos estudos sobre gênero na
antiguidade: as escolhas do historiador e as idéias apresentadas nunca são
aleatórias, são políticas; o debruçar-se sobre o passado é uma forma de buscar
perspectivas para pensar a própria sociedade contemporânea. As enormes mudanças
que ocorrem nas relações entre os universos feminino e masculino, e nas relações
entre gênero e poder, a partir de 1960, criam um interesse sobre as
experiências e o olhar feminino sobre a História; as pesquisas revelam o que
foi ignorado pelo discurso patriarcal de supremacia do homem sobre a mulher, ao
mesmo tempo em que servem de justificativa para os paradigmas do novo discurso.
A sociedade romana tem um caráter
claramente patriarcal e as relações públicas e cargos políticos são monopólio
dos homens; mas a complexidade social e jurídica vai muito alem disso; uma
expressão como “povo romano” esconde uma série de diversidades jurídicas,
econômicas, étnicas e lingüísticas; as relações entre feminino e masculino,
sobretudo, são regidas pelos costumes próprios e pela legislação local. A
ampliação do universo documental (moedas, inscrições, estátuas, tumbas, etc.)
revela, por um lado, a presença de uma classe de mulheres abastadas que pratica
uma intensa política de concessão de benefícios (como distribuição de
alimentos) e patrocínio de obras públicas, desenvolvendo um complexo sistema de
relações pessoais de clientela que envolve patrocínio de corporações de ofício
e gerenciamento de propriedades particulares ou de negócios familiares.
“Também encontram-se referências da participação feminina
em discussões políticas em escrutínios locais. Na Pompéia romana, foram
encontrados cartazes de propagandas eleitorais (programmata) e inscrições em
paredes (grafites), por meio dos quais indicavam os seus candidatos,
manifestavam o seu apoio, discutiam e opinavam sobre a política local, mesmo
sem poderem, legalmente, participar das eleições” (FEITOSA, p. 127).
Toda a questão do confinamento
feminino no lar é repensada; a visão da casa romana como espaço privado,
exclusivo para descanso e convívio familiar, cede espaço para uma nova visão
baseada em pesquisa arqueológica: as casas aristocráticas surgem agora como
espaços onde se desenvolviam articulações políticas e relações de clientelismo,
supondo uma participação feminina nas discussões políticas muito mais intensa
do que imaginado. O mesmo ocorre em relação às classes baixas (mulheres livres
pobres, libertas e escravas), onde elas agora são vistas participando ativamente
nas dinâmicas econômicas (atuando como taberneiras, tecelãs, vendedoras,
cozinheiras, açougueiras, perfumistas, enfermeiras, entre outros) e no espaço
social (idem, p. 124-128).
A autora chama ainda a atenção para
outra importante dimensão do debate sobre gênero na antiguidade romana:
trata-se de uma sociedade anterior à imposição dos valores do pensamento
judaico-cristãos, com juízo de valor muito negativo em relação à sexualidade, e
estão sendo na atualidade profundamente contestados; isso provoca evidentemente
um novo olhar sobre o mito da devassidão moral dos antigos, destacando-se a
percepção do sexo como componente agradável e natural da vida, ou a necessidade
aparentemente tão moderna de querer compartilhar com outros o prazer sentido
numa relação. A autora menciona grafites de Pompéia em que tanto o homem como a
mulher aparecem como dominadores do ato sexual; é comum ver inscrições onde a
mulher gosta de se definir como “possuidora”. Outro detalhe interessante é a
referência comum à prática de cunilíngua, demonstrando uma busca comum de
satisfação do desejo feminino e uma conexão sexo-afetiva entre homem e mulher
baseada em outros parâmetros que não aqueles de dominação e controle (idem, p. 128-135).
5- Bibliografia
LEÃO,
Delfim F. Amor e amizade no Satyricon de Petrônio. Universidade de
Coimbra. Disponível em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/8338.pdf.
Consultado em 19/11/2011.
SILVA,
Amós Coelho da. De Dido à Matrona de Éfeso. Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1. Disponível em: http://www.filologia.org.br/xiv_cnlf/tomo_1/892-898.pdf
. Consultado em 19/11/2011.
SILVA,
Glaydson José da. Aspectos de cultura e gênero na Arte de Amar, de Ovídio, e
no Satyricon, de Petrônio: representações e relações. UNICAMP, Campinas.
Julho, 2001.
FAVERSANI,
Fábio. As relações diretas de poder enquanto instrumento analítico para a
compreensão da pobreza no Satyricon de Petrônio. Revista de História, 1(I):
43-70, jan/jun 1996.
FUNARI,
Pedro Paulo A. GARRAFFONI, Renata Senna. Gênero e conflito no Satyricon:
ocaso da dama de Éfeso. História; Questões & Debates. Curitiba, no.
48/49, p. 101-117, 2008. Editora UFPR.
GARRAFFONI,
Renata Senna. Marginalidade e exclusão: o caso do Satyricon de Petrônio.
Dimensões, vol. 23. 2009. Disponivel em: http://www.ufes.br/ppghis/dimensoes/artigos/Dimensoes22_RenataSennaGarraffoni.pdf.
Consultado em 19/11/2011.
GARRAFFONI, Renata Senna. Bandidos e salteadores na Roma antiga. São Paulo: Editora Annablume. 2002. Disponível em: http://books.google.com.br/books . Consultado em 19/11/2011.
FEITOSA, Lourdes Conde. Gênero e Sexualidade no mundo romano: a antiguidade em nossos dias.
História; Questões &
Debates. Curitiba, no. 48/49, p. 119-135, 2008. Editora UFPR.
PETRONIO.
Satiricon. Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: Editora Abril,
1981.
ANEXOS
Matrona quaedam
Ephesi
[CXI] "Matrona quaedam
Ephesi tam notae erat pudicitiae, ut vicinarum quoque gentium feminas ad
spectaculum sui evocaret. Haec ergo cum virum extulisset, non contenta vulgari
more funus passis prosequi crinibus aut nudatum pectus in conspectu frequentiae
plangere, in conditorium etiam prosecuta est defunctum, positumque in hypogaeo
Graeco more corpus custodire ac flere totis noctibus diebusque coepit. Sic
adflictantem se ac mortem inedia persequentem non parentes potuerunt abducere,
non propinqui; magistratus ultimo repulsi abierunt, complorataque singularis
exempli femina ab omnibus quintum iam diem sine alimento trahebat. Adsidebat
aegrae fidissima ancilla, simulque et lacrimas commodabat lugenti, et
quotienscumque defecerat positum in monumento lumen renovabat. "Una igitur
in tota civitate fabula erat: solum illud adfulsisse verum pudicitiae amorisque
exemplum omnis ordinis homines confitebantur, cum interim imperator provinciae
latrones iussit crucibus affigi secundum illam casulam, in qua recens cadaver
matrona deflebat.
"Proxima ergo nocte, cum
miles, qui cruces asservabat, ne quis ad sepulturam corpus detraheret, notasset
sibi lumen inter monumenta clarius fulgens et gemitum lugentis audisset, vitio
gentis humanae concupiit scire quis aut quid faceret. Descendit igitur in
conditorium, visaque pulcherrima muliere, primo quasi quodam monstro
infernisque imaginibus turbatus substitit; deinde ut et corpus iacentis conspexit
et lacrimas consideravit faciemque unguibus sectam, ratus (scilicet id quod
erat) desiderium extincti non posse feminam pati, attulit in monumentum cenulam
suam, coepitque hortari lugentem ne perseveraret in dolore supervacuo, ac nihil
profuturo gemitu pectus diduceret: 'omnium eumdem esse exitum et idem
domicilium' et cetera quibus exulceratae mentes ad sanitatem revocantur.
"At illa ignota
consolatione percussa laceravit vehementius pectus, ruptosque crines super
corpus iacentis imposuit. Non recessit tamen miles, sed eadem exhortatione
temptavit dare mulierculae cibum, donec ancilla, vini odore corrupta, primum
ipsa porrexit ad humanitatem invitantis victam manum, deinde retecta potione et
cibo expugnare dominae pertinaciam coepit et: 'Quid proderit, inquit, hoc tibi,
si soluta inedia fueris, si te vivam sepelieris, si antequam fata poscant
indemnatum spiritum effuderis? Id cinerem aut manes credis sentire sepultos?
Vis tu reviviscere! Vis discusso muliebri errore! Quam diu licuerit, lucis
commodis frui! Ipsum te iacentis corpus admonere debet ut vivas.' "Nemo
invitus audit, cum cogitur aut cibum sumere aut vivere. Itaque mulier aliquot
dierum abstinentia sicca passa est frangi pertinaciam suam, nec minus avide
replevit se cibo quam ancilla, quae prior victa est.
[CXII] "Ceterum, scitis
quid plerumque soleat temptare humanam satietatem. Quibus blanditiis
impetraverat miles ut matrona vellet vivere, iisdem etiam pudicitiam eius
aggressus est. Nec deformis aut infacundus iuvenis castae videbatur, conciliante
gratiam ancilla ac subinde dicente:
'Placitone etiam
pugnabis amori? Nec venit in mentem, quorum consederis arvis?'
"Quid diutius moror? Jacuerunt ergo una non tantum illa nocte, qua nuptias fecerunt, sed postero etiam ac tertio die, praeclusis videlicet conditorii foribus, ut quisquis ex notis ignotisque ad monumentum venisset, putasset expirasse super corpus viri pudicissimam uxorem.
"Quid diutius moror? Jacuerunt ergo una non tantum illa nocte, qua nuptias fecerunt, sed postero etiam ac tertio die, praeclusis videlicet conditorii foribus, ut quisquis ex notis ignotisque ad monumentum venisset, putasset expirasse super corpus viri pudicissimam uxorem.
"Ceterum, delectatus miles
et forma mulieris et secreto, quicquid boni per facultates poterat coemebat et,
prima statim nocte, in monumentum ferebat. Itaque unius cruciarii parentes ut
viderunt laxatam custodiam, detraxere nocte pendentem supremoque mandaverunt
officio. At miles circumscriptus dum desidet, ut postero die vidit unam sine
cadavere crucem, veritus supplicium, mulieri quid accidisset exponit: 'nec se
expectaturum iudicis sententiam, sed gladio ius dicturum ignaviae suae.
Commodaret ergo illa perituro locum, et fatale conditorium familiari ac viro
faceret.' Mulier non minus misericors quam pudica: 'Ne istud, inquit, dii
sinant, ut eodem tempore duorum mihi carissimorum hominum duo funera spectem.
Malo mortuum impendere quam vivum occidere.' Secundum hanc orationem iubet ex
arca corpus mariti sui tolli atque illi, quae vacabat, cruci affigi.
"Usus est miles ingenio
prudentissimae feminae, posteroque die populus miratus est qua ratione mortuus
isset in crucem."
A Matrona de
Éfeso
CXI – “Havia uma mulher casada em Éfeso que era de uma
castidade tão notável que levava as mulheres até mesmo dos povos vizinhos a visitá-la.
Então, quando ela perdeu o marido, não se limitando a seguir o enterro com os
cabelos soltos, segundo o costume geral, ou a bater no peito nu na presença da
multidão, ela também acompanhou o defunto no túmulo e resolveu chorar e velar o
corpo colocado na cripta, de acordo com o costume grego, por duas noites
inteiras. Nem os pais, nem os parentes puderam afastá-la daquele local, pois
ela se atormentava assim e buscava a morte através da abstinência de alimentos;
os magistrados, repelidos por último, foram-se embora, aquela mulher de exemplo
singular, por quem todos lastimavam, já passava o quinto dia sem alimento. A
mais fiel escrava daquela mulher atormentada não se afastava dela e, ao mesmo
tempo, não só compartilhava suas lágrimas com as de sua senhora, mas também
reacendia a lâmpada colocada no monumento toda as vezes em que ela se apagava. Assim,
pois, na cidade inteira era esse o único assunto, os homens de todas as classes
sociais reconheciam que tal atitude se destacava como exemplo verdadeiro de
castidade e de amor, quando, nesse meio tempo, o imperador daquela província
ordenou que ladrões fossem pregados em cruzes ao lado daquele túmulo, no qual a
mulher velava o cadáver fresco. Então, na noite seguinte, quando o soldado que
vigiava as cruzes, para que ninguém levasse corpo para a sepultura, notou uma
luz brilhando mais forte entre os túmulos e ouviu o soluço de alguém chorando,
por um vício da raça humana ele desejou saber quem era, ou o que estava
fazendo. Então, ele desceu para o interior do túmulo e, quando viu aquela
mulher belíssima, primeiro ficou parado, como que perturbado por algum monstro ou
por fantasmas infernais. Em seguida, quando viu um corpo de homem estendido e
ainda observou as lágrimas e as faces golpeadas pelas unhas, evidentemente
percebendo o que era – uma mulher que não conseguiu suportar a saudade do
extinto marido – levou para aquele túmulo seu pequeno jantar e aconselhou
aquela mulher chorosa a não persistir numa dor inútil e não dilacerar seu peito
com um gemido que não lhe serviria em nada. Ele argumentou que todos teriam aquele
mesmo fim e aquela mesma morada e ainda disse outras coisas com as quais as
mentes atormentadas são reconduzidas à razão. Mas ela, chateada com aquela
tentativa de consolo, castigou mais violentamente seu peito e depositou cabelos
arrancados sobre o corpo do defunto. O soldado, contudo, não recuou, mas, com
aquele mesmo estímulo, tentou dar alimento à pobre mulher, até que sua escrava [certamente
corrompida] pelo bom cheiro do vinho, primeiro ela estendeu sua própria mão
vencida até o espírito de humanidade daquele sedutor, depois, repetida a dose
da comida e bebida, derrotou a obstinação de sua dona e disse: O que você
poderá lucrar sendo aniquilada pela falta de alimento, sendo enterrada viva,
entregando sua alma que ainda não foi condenada, antes que os destinos exijam? Acreditas
que os restos mortais, ou os manes sepultados percebem teu sacrifício? Você não
quer voltar a viver? Não quer usufruir das coisas boas da vida, enquanto ainda
pode, dissipando esse erro próprio das mulheres? O próprio corpo do defunto
deveria encorajá-la a viver? Ninguém deixa de ouvir, quando está sendo coagido
a se alimentar, ou a viver. Assim, a mulher, faminta devido ao jejum de alguns
dias, admitiu que sua perseverança fosse rompida e fartou-se de alimento não
menos avidamente do que a escrava, que foi vencida primeiro.
CXII – Mas vocês sabem o que geralmente costuma inquietar a satisfação
humana. Com as mesmas palavras ternas com que tinha conseguido que a senhora
quisesse viver, o soldado abordou também a castidade dela. E aquele jovem não
parecia disforme ou pouco eloqüente à virtuosa senhora, acrescentando-se a isso
a influência de sua escrava, que dizia a tempo todo:
Ainda lutarás contra este
agradável amor? [Não vem à tua mente nas terras de quem vieste a te estabelecer?]
Para que ficar me alongando tanto? A mulher não mais se absteve de saciar
aquela parte de seu corpo e o soldado vitorioso a persuadiu de ambas as coisas.
Eles, então, deitaram-se juntos não só aquela noite, em que celebraram suas
núpcias, mas também no dia seguinte e ainda no terceiro dia, evidentemente com
as portas do túmulo fechadas, para que qualquer um que viesse ao monumento,
entre conhecidos e desconhecidos, pensasse que aquela virtuosíssima esposa
exalava seu último suspiro sobre o corpo de seu marido. Mas o soldado,
encantado pela beleza da mulher e pelo mistério, comprava e levava para o
túmulo, imediatamente ao cair da noite, tudo de bom que conseguia, dentro de
suas possibilidades. Assim, os pais de um
crucificado, quando viram
a guarda baixada, tiraram durante a noite o corpo pendurado e lhe prestaram a
última homenagem. E o soldado logrado, quando viu no dia seguinte uma cruz sem
cadáver, sentiu o chão sumir a seus pés e, temendo a punição, expôs à mulher o
que tinha acontecido. Ele disse que não iria esperar a sentença do juiz, mas
que iria determinar ele próprio para si a pena de morte, com a espada, por
negligência. Por isso, ele queria que ela lhe concedesse um lugar para morrer e
dedicasse aquele túmulo fatal a seu amante e a seu marido. A mulher, não menos
misericordiosa que virtuosa, disse: Que os deuses não permitam que eu assista,
ao mesmo tempo, aos dois funerais dos dois homens mais especiais para mim.
Prefiro pendurar o morto a matar o vivo. Depois desse discurso, ela ordenou que
o corpo de seu próprio marido fosse retirado do sarcófago e pregado na cruz que
estava vazia. O soldado pôs em prática o plano genial daquela mulher sapientíssima
e, no dia seguinte, o povo espantado ficou a se perguntar de que modo o morto
tinha ido parar na cruz”. (Texto em latim e tradução cf. FUNARI, GARRAFFONI, p.
108)
********************************
Nenhum comentário:
Postar um comentário