Walter Benjamin revela-se um crítico feroz do historicismo; para ele a fixação por conhecer o passado como de fato ele foi não possui nenhuma relação com a articulação histórica (VI). O autor vê a história como um intenso processo de construção do presente sobre o passado (XIV); esse passado carregado de “agoras” tem um imenso potencial que pode ser canalizado de duas maneiras: na primeira a História funciona como discurso de defesa do status quo, como sua justificação; Benjamin chama isso de empatia do historiador pelo vencedor (“a empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores”; VII); isso produz uma “inércia do coração” (VII) que vai levar ao conformismo da social-democracia, ao encantamento com o desenvolvimento da técnica e ao culto moral do trabalho (XI); em resumo, à imobilização (XVII). O segundo uso da História é contemplado pelo materialismo histórico: trata-se de fazer o sujeito histórico despertar de sua letargia, de dar-se conta da exploração das classes dominantes (VI), da destruição cultural dos derrotados (VII), da exploração do proletariado disfarçada na moralização do trabalho (XI); resgatar o passado oprimido é uma oportunidade de luta revolucionária (XVII), de transcender o curso tradicional da história. Na sua metáfora, Benjamin define o primeiro uso como a história numa arena comandada pela classe dominante; na segunda ela é o salto de um tigre sob o céu livre, o salto dialético da revolução (XIV).
Essa concepção de história norteia todo o trabalho de Josep Fontana, a começar pelo título de sua obra, História: análise do passado e projeto social; como define Vitor Biasoli no prefácio da obra, “para Josep Fontana, falar do passado de uma sociedade é posicionar-se em relação ao tempo presente, suas mazelas e grandezas. É definir-se em relação às lutas e aos projetos sociais em confronto na sociedade em que vive o historiador”. Para Fontana o foco da obra não é a historiografia, mas as idéias sociais subjacentes, o projeto social em que o historiador inscreve a sua tarefa (FONTANA, p. 9). Dentro desse escopo a obra é construída em torno do ataque aos modelos de concepção histórica que dão sustentação à sociedade capitalista, por um lado, e à exaltação ao materialismo histórico como modelo que estimula a crítica e a concepção de uma sociedade alternativa baseada em idéias socialistas.
Ainda sobre essa dualidade, Benjamin acredita que o historicismo é desprovido de armação teórica; não passa de uma massa de fatos reunida para preencher o tempo homogêneo e vazio (XVII) e com pretensão de constituir uma história universal. É essencialmente acrítico. Fontana chama isso de genealogia do presente: a seleção e ordenamento dos fatos do passado de forma que conduzam em sequência até o presente, com o fim (consciente ou não) de justificá-lo, produzindo uma visão de que os acontecimentos se encadeiam e dão
como resultado “natural” a realidade social em que vivemos; estabelecida esta
ordem, todas ideias que se opuseram a ela são apresentadas como regressivas, e
todas alternativas como utópicas. O materialismo histórico, em oposição, é
dotado de método, e como tal dotado de um principio construtivo em sua base
(XVII), o que lhe permite confrontar os objetos históricos estruturalmente e
extrair as oportunidades da luta revolucionária, da transcendência; dai ele
afirmar que a compreensão histórica gerada por esse método produz um fruto
nutritivo. Fontana compreende o materialismo histórico da mesma maneira, como
uma ferramenta para a práxis, para a construção de um novo projeto social a
partir da compreensão crítica da realidade presente (idem, p. 11); estão
ligados de forma indissolúvel história, economia política e projeto social.
Para ele é uma quimera essa pretensão acadêmica de investigar
desapaixonadamente o passado: toda leitura histórica está a serviço de um
projeto social e contagiada por interesses. Benjamin, a esse respeito, fala da
construção da história saturada de “agoras” (XIV); a primeira parte da obra de
Fontana é uma longa exposição de como os historiadores através dos tempos
cumprem basicamente uma função social de legitimar a ordem estabelecida, e de
como a partir da Ilustração a História vai se converter em instrumento
fundamental de análise política e base ideológica (idem, p. 77).
Fontana procura mostrar que os
historiadores desempenham papel importante no processo de desenvolvimento do
capitalismo: a escola escocesa, por exemplo, ao produzir uma visão histórica
como linha evolutiva que vai da barbárie ao capitalismo, apresentando a
proteção à propriedade privada, a divisão social do trabalho e o governo civil
como pré-condições para o crescimento econômico. Dentro dessa dinâmica, as
rupturas, como as ideias de Rousseau e Mably de divisão igualitária da
propriedade, ou as primeiras concepções de luta de classes, vão ser combatidas
por uma legião de historiadores do inicio do século XIX; a Revolução Francesa
vai ser submetida a um intenso processo de interpretação para ressaltar seu
caráter burguês e liberal. Seguindo essa linha, Fontana vai destacar o caráter
conservador das leituras históricas a partir da economia clássica e das
incipientes ciências sociais. O processo de reação repete-se com a Revolução
Russa: a reação contra o materialismo histórico vai utilizar-se de conceitos
como a impossibilidade de extrair leis históricas (crítica à racionalidade do
processo histórico). Estes capítulos iniciais, onde Fontana situa
impiedosamente os historiadores em meio aos dilemas sociais de seu tempo,
atende à perfeição a concepção benjaminiana de contemplar à distância os
valores culturais da classe dominante, e sua tarefa de “escovar a história a
contrapelo” (VII).
Os capitulos seguintes, onde Fontana
faz a crítica dos annales e das novas concepções de história, pode ser resumido
nas ideias de Benjamin de falta de armação teórica e método (“ausência de
idéias”, na ácida definição de Fontana, p. 213) e de conformismo e ingenuidade
conceitual (o instrumental de outras ciências vai produzir concepções
históricas ingênuas como a ideia de
“naturalidade” da exploração social).
A crítica feroz à social-democracia
está presente em ambos autores; Benjamin a considera o principal corruptor da
classe operária alemã (XI); para ambos ela aparece como um dos fatores que
levará à ascensão do nazismo.
Finalmente, o apelo militante que
Fontana dirige aos historiadores no epílogo (“Está nas nossas mãos voltar a
começar o mundo de novo”) no sentido de cerrarem fileiras numa luta contra as
ideias atrasadas do passado e no combate à mundialização está impregnado do
messianismo das ideias de Walter Benjamin, quando fala da vitória sobre o Anticristo
e no despertar das centelhas da esperança (VI). Essa fé militante transparece
na biografia do primeiro (que morreu defendendo suas ideias) e no depoimento
com que Fontana encerra o livro:
“O meu oficio
preencheu-me estes anos e deu sentido à minha vida. Porque não é só um trabalho
(…), como também o meu modo de estar neste mundo e de lutar com as armas do meu
ofício contra todas as coisas que impedem que se realize uma sociedade onde
haja (…) a maior igualdade possível dentro da maior liberdade possível”.
BIBLIOGRAFIA
BENJAMIN, Walter.Teses sobre
filosofia da História. Texto fornecido pelo professor.
FONTANA, Josep. História: análise
do passado e projeto social. Bauru, SP: EDUSC, 1998.
FUNARI, Pedro Paulo. CONSIDERAÇÕES
EM TORNO DAS
"TESES SOBRE FILOSOFIA DA HISTÓRIA", DE WALTER BENJAMIN. Disponivel em: http://www.unicamp.br/cemarx/criticamarxista/3_PPFunari.pdf
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