Claudia
Wasserman faz uma análise historiográfica da evolução do discurso nacionalista
e identitário na América Latina, buscando compreender em que condições esse
discurso é produzido e quais suas repercussões.
A autora verifica que desde as lutas
de independência, no inicio do século XIX, os líderes políticos e a
intelectualidade das terras centro e sul-americanas estão entusiasmados com
modelos teóricos vindos da Europa e com o sistema republicano norte-americano.
O paradigma europeu é evidente nos escritos de Simon Bolívar (como no exemplo
analisado em sala de aula, citando Montesquieu num trecho de “Cartas da
Jamaica”), San Martin, Hidalgo e tantos outros. A partir daí cria-se, segundo
Claudia Wasserman, o primeiro grande problema do novo discurso identitário: a
fascinação pelo discurso europeu é excessivamente subjetiva e idealizada; não
há uma percepção da realidade a partir da observação atenta e descompromissada,
mas uma interpretação romântica da realidade a partir de modelos ideais; isso
vai criar, por exemplo, a convicção de que havia no subcontinente a
preexistência de uma comunidade nacional culturalmente identificada anterior à
luta pela emancipação, e fazer com que se ignore o intenso processo de pulverização
do poder central (localismo) e ruralização que se aprofundam a partir das
reformas bourbônicas e vai tornar cada vez mais difícil a aproximação entre as
diversas regiões, ou a constituição de uma unidade administrativa estável nas
antigas unidades coloniais espanholas (WASSERMAN, p. 102-106).
Os sonhos de produzir uma sociedade
a partir de um projeto liberal, que fosse republicana, democrática,
igualitária, racional, industriosa, aberta à inovação e ao progresso resultaram,
cinquenta anos depois, em sociedades oligárquicas,
dominadas por caciques, morosa, cada vez mais desconjuntada, introvertida,
sacudida pela inovação e pelas mudanças produtivas, mas sempre manietada por
suas tradições coloniais (CAMIN, p. 14).
Isso vai produzir um discurso historiográfico
e político que busca identificar as causas do “fracasso”; são freqüentes as
concepções de nações incompletas e revoluções inacabadas. Há intensa frustração pela não implantação de
modelos pré-determinados (situação impossível, uma vez que os construtores das
nacionalidades européias são burgueses, enquanto nas Américas a emancipação é
liderada por latifundiários rurais). Amparados no cientificismo então em voga
na Europa, terra, clima e raça serão consideradas como chaves interpretativas
das “deformações, desvios e incompletudes” do processo de construção da nação,
dando origem a propostas de “branqueamento” da população (imigração de europeus
e extermínio dos indígenas) e de rompimento e repúdio aos valores ibéricos
(WASSERMAN, p. 106).
Embora esse discurso determinista
sobreviva até época recente, a partir das enormes transformações que ocorrem na
sociedade no final do século XIX e inicio do XX surgirá uma nova interpretação
historiográfica focada na questão política. Esse novo discurso é concomitante
com o período de consolidação de uma aristocracia fundiária baseada em
monoculturas para exportação; em defesa de seus interesses, essas oligarquias
fundaram as bases institucionais dos estados políticos latino-americanos,
eliminando localismos caudilhescos e centralizando a administração. Predominam
então os discursos positivistas de manutenção da ordem; apenas a “ordem
positiva” vai criar as condições necessárias para o progresso; é nesse ambiente
que frutifica o arielismo, com suas idéias de “emancipação mental” e libertação
de modelos estrangeiros (RODÓ, p. 300).
O discurso positivista se propõe a
demonstrar “cientificamente” que os povos latino-americanos eram incapazes de
realizar princípios liberais e democráticos e justificar os governos oligárquicos
como uma necessidade.
As intensas transformações deste
periodo são o tema do texto de José Luis Romero. O que acontece na América
Latina é reflexo da Revolução Industrial em andamento na Europa: os centros
industriais são repentinamente assaltados por uma demanda cada vez maior por
matérias-primas e pela necessidade de abrir mercados consumidores para seus
produtos. Essa dinâmica vai atingir a América Latina exatamente nas cidades que
se integram à economia mundial: inicialmente as grandes cidades portuárias, e
em seguida as regiões produtoras que vão se integrando à rede de ferrovias que
se espalham pelo continente. O rápido crescimento dessas cidades vai produzir
uma transformação radical da sociedade: as novas oportunidades atraem
habitantes das áreas rurais e imigrantes estrangeiros em grande quantidade;
surge um espaço de grande mobilidade social que altera o sistema tradicional de
relações sociais (ROMERO, p. 295). Parte do velho patriciado rural soube se
adaptar aos novos tempos, aliar-se ao capital estrangeiro e ingressar no novo
mundo industrial-financeiro; mas o que garantiu a grande dinâmica do processo
foi uma classe de pessoas de poucas posses porém livres das limitações dos
hábitos tradicionais e que rapidamente se adaptaram ao novo ambiente
empreendedor; partindo do pequeno comércio e da prestação de serviços elas
foram enxergando as oportunidades oferecidas pelas novas demandas e em pouco
tempo constituíram grandes fortunas. Entrava em cena a burguesia urbana; dona
do mundo dos negócios, ela logo disputaria com as antigas oligarquias o
controle político.
É nas cidades que vai tomar forma
outro importante agente social: o proletariado industrial. Reunidos em grandes
grupos nesse novo ambiente coletivo da fábrica, onde prevaleciam relações
sociais despersonalizadas (diferente da relação patriarcal predominante no meio
rural), eles logo vão construir uma identidade de classe e se organizar para
defender seus interesses (ROMERO, p. 307).
Nesse ambiente de intensa circulação
de idéias e mobilidade social nasce uma nova cultura urbana; os hábitos
cotidianos se modificam, a ocupação dos espaços se transforma. A burguesia e o
proletariado se organizam politicamente e exigem o direito de intervir na vida
política do país.
A contestação do sistema oligárquico
é a tônica do novo discurso historiográfico e político; a crítica da
intelectualidade latino-americana é agora contra o modelo de capitalismo
implantado pelas oligarquias exportadoras (que cria uma relação de dependência
e vulnerabilidade às oscilações dos centros produtores estrangeiros) e pela
clausura política por eles imposta (WASSERMAN, p. 112).
A Revolução Mexicana é um retrato
vivo desse momento de contestação do modelo republicano oligárquico, analisado
no texto de Hector Aguilar Camin/ Lorenzo Meyer: as décadas de dominação do
porfirismo são um exemplo clássico do estado a serviço de grandes
latifundiários exportadores. Longe de ser um período de crise, é um periodo de
intenso desenvolvimento econômico, que vai produzir dois reflexos distintos:
- Vai acentuar os problemas sociais, na medida em que a expansão dos latifúndios acaba com as pequenas propriedades comunitárias, o rápido surto de crescimento provoca uma inflação que corrói o salário dos trabalhadores e a valorização das terras provocada pela chegada das ferrovias produz uma onde de desapropriação de terras camponesas.
- O monopólio do poder exercido pela oligarquia ligada a Porfírio Diaz impede a participação política e a ascensão social da nova burguesia urbana e de setores conservadores que foram alijados do poder.
A contestação ao regime parte de
setores conservadores da sociedade, grandes famílias patriarcais e a classe
média burguesa que pressionam por maior participação política. È a
intransigência do regime porfirista que vai levar à radicalização do movimento.
Como analisa brilhantemente Adolfo Gilly, é uma revolução burguesa que vai
mobilizar as massas para ter seu apoio (GILLY, p. 40).
Estruturalmente a Revolução Mexicana
ocorre num período de transição entre dois modelos: a república oligárquica,
organizada para atender as demandas dos grandes latifúndios exportadores que
estavam se expandindo às custas do sistema indígena de propriedade coletiva das
terras (CAMIN, p. 16); e a república burguesa que é necessária para atender as
demandas da nova classe de industriais que controla a economia (GILLY, p. 27).
Nesse sentido, embora cheia de
especificidades (como a prematura organização política dos camponeses em grupos
como os zapatistas, muito anterior à organização do proletariado urbano), a
Revolução Mexicana representa um processo de contestação dos governos oligárquicos
e sua progressiva substituição por governos burgueses que ocorrerá em toda
América Latina.
Estes novos governos trazem um
discurso vigorosamente nacionalista e de valorização dos aspectos identitários
(WASSERMAN, p. 113). A vida política deslocou-se da reunião de algumas famílias
para a praça pública; a entrada das massas na arena política não significou, no
entanto, democracia: os novos governos são autocráticos e ditatoriais, mas
apoiados em amplo apoio popular, sobretudo das classes urbanas, conquistado por
meio de concessões sociais e de políticas estatais paternalistas (ROMERO, p.
327).
O triunfo da burguesia traz consigo
uma nova mentalidade amparada numa filosofia do progresso; tudo que se opunha ao desenvolvimento linear e acelerado do mundo
urbano e europeizado era condenável (ROMERO, p. 344). A ascensão social não
é mais determinada pelo sangue, mas pelo êxito econômico. Tudo isso abre um
fosso enorme entre o mundo urbano e o mundo rural, ainda controlado pelos
latifundiários, sem mobilidade social e firmemente identificado com os valores
tradicionais do catolicismo; sobretudo à medida que o controle político e
econômico se desloca do campo para a cidade (ROMERO, p. 334).
Na década de 1930 a cidade se afirma cada
vez mais como um espaço de pluralidade; deixou de ser um conjunto integrado,
como o da sociedade colonial, e afirma-se cada vez mais como uma justaposição
de grupos de diferentes mentalidades; a nova sociedade multitudinária quebra o
velho sistema de normas e valores. As tensões daí decorrentes vão produzir
comparações com a Babel bíblica; é no ambiente urbano que o papel feminino na
sociedade é contestado, numa revisão constante do sistema de normas sociais
(ROMERO, p. 351).
O discurso historiográfico reflete
estas transformações e o pluralismo: o marximo é incorporado como modelo
explicativo e como instrumento de luta política (ao mesmo tempo em que revive o
hábito de importar modelos prontos) e se fortalece a defesa da aproximação
entre os países latino-americanos, que vai desembocar em iniciativas como a
criação da CEPAL.
CAMIN,
Hector Aguilar. MEYER, Lorenzo. À sombra da Revolução Mexicana: história
mexicana contemporânea, 1910-1989.
GILLY,
Adolfo /outros autores. Interpretaciones de la revolucion mexicana.
RODÓ,
José Enrique. Ariel (fragmento)
ROMERO,
José Luiz. América Latina: as cidades e as idéias
WASSERMAN,
Claudia. Percurso Intelectual e Historiográfico da Questão Nacional e Identitária
na América Latina: as condições de produção e o processo de repercussão do
conhecimento histórico
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