A proposta do tema é refletir sobre
a religiosidade no mundo romano a partir das novas concepções historiográficas,
da ênfase no caráter multicultural do Império.
A historiografia sobre o Império Romano
mudou de foco nas últimas décadas: a idéia de uma imposição unilateral de
valores culturais a partir do centro (romanização) foi substituída pela
percepção de que as trocas culturais entre Roma e as regiões periféricas do
império se davam numa via de mão dupla; a constatação de que as províncias não
eram tão “romanas” quanto se pensava anteriormente logo levou à percepção de
que a própria cultura romana foi profundamente influenciada pelas culturas
estrangeiras, alterando sua própria identidade cultural; compreender como as
influências estrangeiras mudaram a identidade cultural romana tornou-se
imperativo para a compreensão da identidade dessa nova sociedade cosmopolita
que é gestada no Mediterrâneo (para um debate sobre Romanização ver Woolf 1998;
MacMullan 2000 e Hingley 2005)
O papel da influência grega nesse
contexto é bastante conhecido; a fusão cultural é tão intensa que os estudiosos
preferem falar em termos de mundo greco-romano (Guarinello 2010), mas está cada
vez mais evidente que o Egito teve um papel de grande destaque dentro da
cultura romana; a intensidade da Egiptomania
romana é revelada pela grande quantidade de achados arqueológicos e pelas
inúmeras referências literárias.
A deusa Isis sempre foi, direta ou
indiretamente, central para o estudo das influências egípcias no mundo romano.
O novo paradigma destes estudos (Takács 1995;
Versluys 2002; Elsner
2006) revela que Isis transcende o aspecto religioso e faz
parte de um processo cultural de interação muito mais amplo, colaborando, por exemplo,
na construção da ideologia imperial de Augusto (Versluys
2002; Nilo em Tiber);
é necessário, portanto, compreeender toda uma dinâmica que determina a escolha
pelos elementos a ser apropriados, como são apropriados e o real significado
dos novos elementos construídos, da ressignificação.
O
culto de Isis experimentou uma notável expansão dentro do mundo romano,
atingindo os pontos mais distantes do império e penetrando profundamente em
todos segmentos da sociedade romana, desde a pessoa do próprio imperador e seu
séquito, passando pelas elites, como o demonstram a presença de inúmeras
capelas particulares dedicadas ao culto de Isis nas propriedades
aristocráticas, em Pompéia e diversas cidades romanas e chegando às classes
populares, sobretudo aos escravos (WITT, p.60) .
A
historiografia dos cultos egípcios no periodo romano é relativamente recente. O
estudo da religião egípcia desperta grande interesse na Europa a partir da
expedição de Napoleão ao Egito (1798) e experifmenta grande impulso a partir da
decifração dos hieróglifos (1822); o foco dos estudos, no entanto, é a antiga
civilização egípcia, desde as origens até o fim do Novo Império. Sobretudo a
partir da helenização (305 aC)
há um entendimento de que a cultura egípcia perde a originalidade e torna-se
decadente. Nesse contexto a expansão dos cultos egípcios pelo mundo romano é
vista como parte do processo de “decadência moral” experimentada pelo império;
o estigma negativo que paira sobre os cultos egípcios tem duas origens
fundamentais: a tradição histórica cristã (que gira em torno de como o
cristianismo derrotou as superstições vigentes na época romana e produziu uma
revolução moral a partir daí) e a idealização que os autores iluministas fazem
da cultura romana, “pura” no periodo republicano e progressivamente
“corrompida” na fase imperial com a chegada dos cultos orientais (Gibon, p.
35).
O
estudo metodológico do sincretismo religioso no Império Romano inicia a partir
de 1906 com o historiador e arqueólogo belga Franz-Valéry-Marie Cumont, autor do clássico Les religions orientales dans le paganisme romain. Cumont, no entanto,
considera o processo de penetração e assimilação de cultos como o mitraísmo, o
judaísmo e os cultos egípcios como uma unidade cultural (religiões orientais)
em que as particularidades de cada culto são pouco importantes; o próprio fato
de uma mesma pessoa atuar ao mesmo tempo como sacerdote de Isis e de Mitra é
citado como prova disso.
As
especificidades dos cultos egípcios no mundo romano passam a ser destacadas a
partir da reunião metódica de fontes; em 1922 Theodor Hopfner publicou uma
gigantesca coletânea de fontes primárias sobre os cultos egípcios, Fontes
Historiae Religionis Aegypticae; e em 1940 um estudo comentado do Isis e
Osíris de Plutarco. Reginald E. Witt publica a partir de 1971 uma série de
trabalhos sobre o culto de Isis, em especial Isis in the Graeco-Roman World.
Autores como Witt, Tran Tam Tinh e
Françoise Dunand chamam a atenção para a intensidade da penetração de elementos
da cultura egípcia no mundo greco-romano, algo ignorado até então. O grande
volume de estudos leva à realização da 1ª. Conferência Internacional de Estudos
Isíacos (1997, Poitiers, França), evento que ocorre com regularidade desde
então (2ª. Em 2002, Lyon; 3ª. Em 2005, Leiden; 4ª. Em 2008, Lyege). A nova
geração de estudiosos (Laurent Bricaul, Miguel Versluys e Paul Meyboom) analisa
o culto de Isis não apenas do ponto de vista religioso, mas sobretudo como
chave interpretativa do intenso processo de apropriação de valores culturais
egípcios no mundo romano; a representação da deusa Isis surge não apenas em
contextos de culto religioso, mas também como motivo cultural e estilístico que
remetem ao imaginário sobre o Egito. Essa interação cultural alcança grande
amplitude e influencia comportamentos sociais e a própria dinâmica política.
Isis está presente, por exemplo, na construção da ideologia imperial de
Augusto; sua associação à figura do imperador (Isis Augusta) é uma clara
apropriação do papel original de Isis no contexto egípcio, como protetora do
faraó (encarnação e/ou representante de seu filho sagrado, Hórus). Essa
poderosa inter-relação Isis/Egito vai levar à proposta de padronizar
metodologias de estudo e as terminologias utilizadas (MALAISE, 2005).
Paralelamente a essa inserção de
motivos egípcios na cultura greco-romana ocorre o movimento contrário: o culto
isíaco se apropria de elementos próprios da cultura das regiões onde se
estabelece; isso afeta não só as representações estéticas, mas sobretudo o
próprio corpo doutrinário do culto; um destes temas, em particular, se tornaria
um dos principais motivos representados nas pinturas murais dos templos de
Isis, atrás apenas do motivo principal, a morte e ressurreição de Osíris: o
mito de Io.
Io é uma princesa grega que desperta
a paixão de Zeus; isso atrai a ira de Hera, sua esposa, que a transforma em uma
vaca, e sua implacável perseguição a obriga a cruzar os mares e se refugiar no
Egito. Cansada de seus sofrimentos, Io suplica a Zeus pela morte. Este,
comovido, restitui-lhe a condição humana. O mito, narrado por autores como
Esquilo e Ovídio, tem imensa popularidade no mundo grego; em sua honra são
nomeados o mar Jônico (mar de Io) e o estreito de Bósforo (que significa “pata
de vaca”, em referência ao estado animal de Io). O exílio de Io no Egito produz
uma imediata associação com Isis. Na reapropriação do mito observada nas
pinturas dos templos é a própria deusa Isis quem, comovida com os sofrimentos
de Io, lhe restitui a condição humana. As lamentações de Io são frequentemente
associadas aos próprios lamentos de dor de Isis durante a peregrinação para
operar a ressurreição de seu marido, e conduz a uma mensagem de profundo
significado para o culto: Isis, devido ao próprio sofrimento que experimentou,
é especialmente inclinada a sensibilizar-se com o sofrimento humano (BRENCK,
2009); este seria um dos elementos que explicaria a rápida expansão do culto
pelo mundo mediterrânico. As representações murais sobre o lamento de Io e o
sofrimento de Isis em ambientes domésticos e públicos são muito comuns na
Grécia e Roma dos séculos seguintes, a ponto de poderem ter influenciado a
forma como Paulo e seus seguidores apresentam na Grécia o sofrimento de Jesus,
realizando seus discursos em ambientes decorados com estes motivos (BALCH,
2003).
A epopéia de Io também serviu de
inspiração para um dos textos de apologia de Isis mais conhecidos na literatura
romana, o romance Metamorfoses (O Asno de Ouro), de Lucius Apuleio, escrito na
segunda metade do século II dC; o mote é praticamente o mesmo: o personagem
Lucius é transformado num asno por poderes mágicos; nesse estado passa por uma
série de desventuras até que decide apelar a Isis para recuperar sua condição
humana.
O interesse moderno pelo culto de
Isis cresceu a partir da sugestão de alguns estudiosos, sobretudo R. E. Witt,
de que o culto isíaco sofreu um enorme processo de apropriação por parte do
cristianismo, numa escala talvez muito maior do que a sugerida anteriormente,
principalmente quando se fala das origens da Mariolatria; o assunto tornou-se
ainda mais instigante quando escavações arqueológicas recentes na Campânia e
diversas regiões da Europa sugerem uma enorme sobrevida do culto em pleno
período cristão, e um recurso à violência em grande escala para destruir os
locais públicos de culto à deusa (BRICAULT, 2007).
Bibliografia
BAAREN, DRIJVERS. Religion, Culture and Methodology. London, 1973.
BALCH, David L. The Suffering of Isis/Io and Paul's Portrait of Christ Crucified (Gal.
3:1): Frescoes in Pompeian and Roman Houses and in the Temple
of Isis in Pompeii, in The
Journal of Religion, Vol. 83, No. 1 (Jan., 2003),
pp. 24-55. The University
of Chicago Press.
BARTHES, R. Elements de Semiologie. Paris, 1964.
BEARD, Mary. Pompeii: the life of a roman town. London, Profilebooks,
2008.
BLANC, Nicole; ERISTOV, H.;
FINCKER, Myrian. Reflection dans lê
temple d´Isis a Pompei; in Revue Archeologique, 2000, no. 2
BRENT, Allen. The imperial cult and the development of
Church order. Leiden,
Brill, 1999.
BURKE, Peter. Testemunha
Ocular. Bauru, SP: EDUSC, 2004.
___________ . Variedades
de História Cultural, RJ: Civilização Brasileira, 2006.
BRENCK,
Frederick. Great Royal Spouse who
protects her brother Osiris: Isis in the Isaeum at Pompeii. In CASADIO
2009.
BRICAULT, L.; VERSLUYS, M.J.; MEYBOOM, P.G.P. Nile into Tiber. Egypt in the Roman world.
Proceedings of the IIIrd international conference of Isis
studies. (Leiden 2007)
BROWN, Peter. The World of
Late Antiquity. London:
WW Norton, 1989.
CASADIO,
Giovanni; JOHNSTON, P.A. Mystic
cults in Magna Graecia. Austin. University Texas Press. 2009.
CHUVIN,
Pierre. Chronique des derniers paiens.
Paris, Fayard, 1990.
CUMONT,
Franz. After Life in Roman Paganism.
Yale Press, 1922.
DIELEMAN,
Jacco. Priests, Tongues, and Rites. Leiden, Brill, 2005.
DOWDEN,
Ken. European Paganism. London, Routledge, 2000.
ELIADE, Mircea. O
Sagrado e o Profano. Lisboa, Edição Livros do Brasil,1972.
_____________. História
das Crenças e das idéias religiosas. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.
ELSNER, J. Classicism in Roman Art,
in: J.I. Porter (ed.), Classical Pasts.
The classical traditions of Greece
and Rome (Princeton
2006).
FERRETI, Sylvia. Cassier,
Panofsky, Warburg: Simbol, Art and History. N. Haven, Yale Press, 1989.
FRANGOULIDIS, Witches, Isis
and Narrative: approaches to magic in Apuleius Metamorphoses. Berlin: Walter de
Gruyter, 2008.
FREDE, M.;
ATHANASSIADI, P. Pagan Monotheism in Late
Antiquity. Oxford,
Clarendon Press, 1999.
FORREST, Isidora. Isis Magic: Cultivating a Relationship With the Goddess of 10,000 Names (St. Paul-USA, 2004)
GONÇALVES,
Ana T.M.; NETO, Ivan V. Religião e magia
na Antiguidade Tardia: do helenismo ao neoplatonismo de Jâmblico de Cálcis;
in Dimensões, vol. 25, 2010, p. 4-17.
GIBBON, Edward. The History of the Decline and Fall of the Roman Empire, Volume 1 (London, 1846).
GUARINELLO, Luiz N. Ordem, integração e fronteiras no Império Romano: um ensaio. In: Mare Nostrum, v. 1, pp. 113-127, 2010.
HINGLEY, R., Globalizing Roman
culture. Unity, diversity and empire (London 2005).
KOCKELMANN, Holger. Praising the
Goddess. Berlim, Walter de Gruyter, 2008.
KLEINER, Fred. A History of Roman Art. London: Enhanced Edition,
2010.
LAVAN, L.;
MULRYAN, M. The archaelogy of Late
Antique Paganism. Leiden,
Brill, 2009.
LIMBERS, V. Divine Heiress: the Virgin Mary and the
creation of Christian Constantinople. London,
Routledge, 1994.
MACMULLAN, R., Romanization in the
time of Augustus (New Haven 2000)
MALAISE,
Michel. Pour une terminologie et une
analyse des cultes isiaques, Bruxelles, 2005.
MANGUEL,
Alberto. Lendo Imagens. SP, Cia. Letras, 2001.
MARROU, Henri-Irenée. ¿Decadencia
romana o Antiguedad Tardia? Siglos III-VI. Madrid: Rialp, 1980.
MONAGHAN, Patricia. Encyclopedia of Goddesses and Heroines, vol I. (Sta. Barbara-USA, 2010). Greenwoold Publ.
MONNIER, Marc. The Wonders of Pompeii. N. York, Bibliobazaar, 2007.
MUERDOCK, D.M. Christ in Egypt: The Horus-Jesus connection. NY, Stellar House, 2011.
REED, E.C. Circle of Isis: ancient Egyptian magick for modern witches. N. Jersey, New Page, 2002.
RUBENSTEIN, R.E. When Jesus became God. Orlando, Harcourt Brace, 1999.
STADTER, Philip A.
Plutarch and the Historical tradition.
New York:
Routledge, 1995.
TAKACS, S. A., Isis and Sarapis in
the Roman World (Leiden
1995)
TATE,
Karen. Sacred Places of Goddess: 108
destinations. San Francisco,
EUA. CCCPublishing. 2006.
TERRIN,
Aldo Natale. Introdução ao Estudo
Comparado das Religiões. São Paulo: Paulinas, 2003.
TINH, Tram Ta. Essai sur le culte d’Isis à Pompéi
(Paris 1964)
___________. Lê mythe d´Io: les transformations d´Io dans l´iconographie et la literature grecques, in Iconographie Classique et Identites Regionales, Bulletin de Correspondence Helenique, Supplement, no. 14 (Paris, École Française d´Athens, 1986), pp. 3 – 23.
VEYNE, Paul. O indivíduo atingido no coração pelo poder.
In:
VEYNE, P. et al. Indivíduo e Poder. Lisboa: Setenta, 1987.
VERSLUYS, M. J. Cultural
innovation in a cosmopolitan society: Egypt in the Roman world. Disponível em: http://media.leidenuniv.nl/legacy/summary-vidi-egypt-in-the-roman-world.pdf
(consultado em 21/04/2012).
_______________, Aegyptiaca
Romana. Nilotic Scenes and the Roman Views of Egypt (Leiden 2002)
_______________, Aegyptiaca
Romana. The widening debate, in BRICAULT 2007, p. 1-14.
VERSNEL, H.S. Isis, Dyonisos,
Hermes: three studies in Henotheism. Leiden,
Brill, 1990.
WALTER, E.J. Attic graves reliefs
that represent women in the dress of Isis.
N. Jersey, 1988.
WITT,
R. E. Isis in the Graeco-Roman World.
London, Thames &Hudson,
1971.
WOOLF, G. Becoming Roman. The
origins of provincial civilization in Gaul (Cambridge 1998)
_______________________________________________________________
Nenhum comentário:
Postar um comentário