A primeira dificuldade para
estabelecer correlações entre o populismo e a Revolução Cubana reside da
definição do primeiro conceito; como esclarece com muita consistência o texto
de Maria Helena R. Capelato, populismo é um assunto que comporta visões muito
distintas e recortes temporais e geográficos diversos. O curso apresentou nesse
sentido um estudo de caso a partir dos governos que sucederam a Revolução
Mexicana e o peronismo na Argentina; a partir deste estudo é possível
afirmarmos em relação ao populismo:
São experiências político-sociais
que se opõem aos governos oligárquicos, ao ideário liberal imposto pelas
oligarquias agro-exportadoras; surgem num contexto de ascensão de novos agentes
sociais: a burguesia e as classes trabalhadoras, que lutam por participação no
jogo político. A chamada “crise dos arranjos oligárquicos” tem basicamente dois
componentes distintos: a incapacidade demonstrada pelos governos oligárquicos
em absorver politicamente as novas massas urbanas, e as constantes crises
econômicas derivadas do modelo de economia agro-exportadora atrelada à economia
mundial e de filosofia liberal de não-intervencionismo.
O populismo seria, portanto, o
resultado de pressões por maior participação política da burguesia e de
centralização para acelerar a implantação de reformas que permitissem a
consolidação do capitalismo (capitalismo tardio). O Estado torna-se o grande
árbitro das questões sociais, que são estabelecidas de cima para baixo.
É preciso lembrar que a expressão
“populismo” surgiu num contexto de crítica às ditaduras personalistas do
periodo, apresentadas como autoritárias e com poder baseado num sistema de
manipulação das massas, cooptação da intelectualidade, censura dos meios de
informação e aparelhamento dos movimentos sindicais. A historiografia recente,
no entanto, tem lançado um novo olhar sobre estes governos: Maria Capelato
destaca o intenso processo de negociação entre movimentos operários e os
governos cardenista, peronista e varguista, onde os trabalhadores organizados
surgem não como a massa manipulada normalmente estereotipada, mas como agentes
políticos interessados que fazem opções pragmáticas deliberadas, cedendo em
relação ao status de liberdade política (que sempre foi uma palavra vazia nos
governos oligárquicos) em troca da concessão concreta de direitos de cidadania
e de progresso na legislação trabalhista (CAPELATO, p. 152); Francisco Weffort
também caminha nessa direção, analisando a idéia de manipulação das massas no
varguismo:
“...E ai nos
defrontamos com um outro limite fundamental da manipulação, que não teria sido
possível se os interesses reais das
classes populares não tivessem sido atendidos em alguma medida, sem o que não
teria persistido o apoio que prestavam a lideres originários de outras classes
sociais.” (WEFFORT)
O
populismo, portanto, se consolida atravéz de compromissos assumidos com
diversos agentes sociais: ao mesmo tempo em que é apoiado pela burguesia, por
conta das políticas desenvolvimentistas de industrialização, nacionalização de
empresas e substituição de importações, recebe o apoio das classes
trabalhadoras ao implantar uma legislação trabalhista e regularizar a ação dos
sindicatos. O discurso antiimperialista e nacionalista garante o apoio dos movimentos
de esquerda.
A
primeira relação que podemos estabelecer entre populismo e a Revolução Cubana é
a de que ambos estão inseridos num processo estrutural que ocorre em toda a
América Latina de contestação das idéias liberais. Esse processo reproduz a
contestação do liberalismo que ocorria na própria Europa, com teses da esquerda
e da direita favoráveis à construção de um estado centralizador capaz de
dirigir o desenvolvimento econômico e intervir nos conflitos sociais e
políticos (CAPELATTO, p. 128).
Todos
estes movimentos tiveram inicialmente um discurso reformista de modernização e
contestação dos governos oligárquicos. O próprio Che Guevara declara:
“Al fin y al cabo Fidel Castro era um
aspirante a diputado por um partido burguês, tan burguês e tan respetable como
podia ser el partido radical em la Argentina; que seguia lãs huellas de um
líder desaparecido, Eduardo Chibas, de unas características que pudieramos
hallar parecidas a las del mismo Irigoyen...” (GUEVARA, p. 414)
Os
movimentos evoluem de forma similar; tendo iniciado como movimentos
político-partidários, são os vícios do jogo político das oligarquias que vão
fazer com que estes movimentos radicalizem o discurso e partam para a luta
armada (Revolução Mexicana, Revolução de 1930 no Brasil, golpe militar de 1943
na Argentina, Revolução Cubana em 1959). No entanto, com a ascensão ao poder,
ocorre uma distinção clara entre os dois movimentos: os movimentos estudados
contêm muitas especificidades, mas nos governos populistas a retórica revolucionária
vai ficar restrita ao discurso; muito mais que um governo institucional, há um
governo baseado na figura do líder supremo “em contato direto com as massas”.
Ocorre a centralização do estado e a modernização da economia, mas atendendo
basicamente uma agenda reformista de consolidação do capitalismo. Apenas o
regime cubano vai optar por romper radicalmente com o modelo econômico e social
e abraçar as idéias socialistas. Che chega a mencionar isso como elemento que
atrasou a reação anti-revolucionária: as forças conservadoras estavam
habituadas a movimentos com discursos incendiários que sentavam-se à mesa para
negociar assim que chegavam ao poder:
“Nunca lês pasó pó la cabeza que lo que
Fidel Castro y nuestro movimiento dijeran tan ingênua y drasticamente fuera la
verdad de lo que pensábamos hacer (...) traicionamos la imagem que ellos se
hicieron de nosotros”. (GUEVARA, p. 415).
Florestan
Fernandes atribui o radicalismo cubano às especificidades históricas da ilha: a
independência tardia em relação à Espanha e a imediata submissão à esfera de
influência norte-americana impediram a formação de uma burguesia que investisse
na construção de um projeto nacional de caráter liberal; o atrelamento da
burguesia local aos interesses de uma potência estrangeira criou a situação
incomum de caber às camadas populares a luta nacionalista, e impediu o que
ocorria nos demais estados do continente, onde as “revoluções nacionais vitoriosas eram lideradas e freadas pelos
estamentos privilegiados dominantes”; enquanto no continente os novos
governos limitam-se a uma agenda reformista que privilegia interesses e valores
sociais burgueses e à construção de um aparelho estatal nacional, Cuba embarca
“na construção de uma ordem social
inteiramente nova e socialista” (FERNANDES, p. 12 e 56-59).
O
texto de Florestan permite ainda uma reflexão comparativa com as idéias de
Maria Capelato: enquanto a historiografia que se seguiu à queda dos regimes
militares (fins de 1970 e início de 1980) realçava os regimes populistas da
década de 1930 como os artífices do legado autoritário que desembocaria nas
ditaduras, com seu discurso antiliberal e suas idéias direitistas de um regime
autoritário que fosse capaz de impedir o avanço do comunismo, a
intelectualidade do mesmo período saúda a Revolução Cubana como o fenômeno
político mais original e esperançoso do continente, como uma antevisão do
futuro comum:
“Ela não é uma revolução dos “outros” – uma
revolução dos cubanos. É o nosso quinhão da história coetânea e contemporânea.
Cuba vive, no presente, o nosso futuro de outra maneira”. (idem, p. 07).
E,
como tal, a intelectiualidade é profundamente tolerante com os eventuais
excessos do regime cubano:
“Cuba foi o país no qual as condições
difíceis se mostraram do modo mais difícil. Não podemos ignorar os fatos e, se
há algo admirável com relação a Cuba, é a forma pela qual a revolução procurou
subjugar e ultrapassar os fatos mais duros e adversos. Não se deve ignorar
isso, se se quiser compreender, amar e servir à revolução cubana”. (idem,
p. 06)
Como
destaca Maria Capelato, a historiografia do final do século passa a ver o
populismo com outros olhos, enfatizando o apoio que os líderes populistas
tinham dos movimentos esquerdistas e suas relações com as classes
trabalhadoras, e o processo em que as intervenções do Estado e as novas formas
de controle social logram atender interesses populares, principalmente na forma
de direitos, cidadania e conquistas salariais (o salário real dos trabalhadores
industriais, na Argentina peronista, cresceu 53% no periodo de 1946 a 1949). Nessa
releitura o movimento sindical e os trabalhadores deixam de ser vistos como a
massa manipulada e tornam-se agentes políticos ativos interessados num projeto
pragmático; as reformas sociais do periodo populista e a maior
representatividade política conquistada pelas classes trabalhadoras são na
verdade um processo de democratização quando comparadas aos governos
oligárquicos anteriores.
Cuba,
por outro lado (e isso é uma análise própria), segue no caminho inverso: o
fascínio com a retórica socialista pertence ao passado; o regime cubano
funcionou de fato como um regime tremendamente personalista similar às críticas
mais ferrenhas feitas aos lideres populistas. A burguesia servil aos interesses
norte-americanos cedeu lugar a uma nomeklatura
cubana, uma elite de funcionários públicos de altos escalões cheios de
privilégios. Os socialistas cubanos foram incapazes de formar uma nova classe
de dirigentes, e o velho Fidel é substituído no comando pelo próprio irmão, num
cenário onde claramente o espaço democrático é muito restrito.
Há ainda outra relação interessante entre a
Revolução Cubana e o populismo: ambos guardam íntima relação com o processo de
intensa industrialização do continente; ambos experimentam processos de
nacionalização de indústrias e políticas estatais de incentivo à substituição
de importações; as semelhanças terminam aí: enquanto no continente a ação estatal cria as condições estruturais
para que a iniciativa privada realize a industrialização (principalmente
financiada por grupos estrangeiros), Cuba vai optar por um processo de
estatização da economia.
Bibliografia
CAPELATTO,
Maria H. R. Populismo latino-americano em
discusssão; in FERREIRA, J. (org.). O
populismo e sua história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
FERNANDES,
Florestan. Da guerrilha ao socialismo: a
revolução cubana. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979.
GUEVARA, E. C. Latianoamérica: la revolucion
necessária y otros escritos. Cuba :1960.
SAINT-PIERRE,
Hector L. A Política Armada: fundamentos da Guerra revolucionária. São Paulo:
Ed. Unesp, 1999.
WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
Nenhum comentário:
Postar um comentário