sábado, 16 de junho de 2012

Correlações entre a Revolução Cubana e Populismo




            A primeira dificuldade para estabelecer correlações entre o populismo e a Revolução Cubana reside da definição do primeiro conceito; como esclarece com muita consistência o texto de Maria Helena R. Capelato, populismo é um assunto que comporta visões muito distintas e recortes temporais e geográficos diversos. O curso apresentou nesse sentido um estudo de caso a partir dos governos que sucederam a Revolução Mexicana e o peronismo na Argentina; a partir deste estudo é possível afirmarmos em relação ao populismo:

            São experiências político-sociais que se opõem aos governos oligárquicos, ao ideário liberal imposto pelas oligarquias agro-exportadoras; surgem num contexto de ascensão de novos agentes sociais: a burguesia e as classes trabalhadoras, que lutam por participação no jogo político. A chamada “crise dos arranjos oligárquicos” tem basicamente dois componentes distintos: a incapacidade demonstrada pelos governos oligárquicos em absorver politicamente as novas massas urbanas, e as constantes crises econômicas derivadas do modelo de economia agro-exportadora atrelada à economia mundial e de filosofia liberal de não-intervencionismo.
            O populismo seria, portanto, o resultado de pressões por maior participação política da burguesia e de centralização para acelerar a implantação de reformas que permitissem a consolidação do capitalismo (capitalismo tardio). O Estado torna-se o grande árbitro das questões sociais, que são estabelecidas de cima para baixo.
            É preciso lembrar que a expressão “populismo” surgiu num contexto de crítica às ditaduras personalistas do periodo, apresentadas como autoritárias e com poder baseado num sistema de manipulação das massas, cooptação da intelectualidade, censura dos meios de informação e aparelhamento dos movimentos sindicais. A historiografia recente, no entanto, tem lançado um novo olhar sobre estes governos: Maria Capelato destaca o intenso processo de negociação entre movimentos operários e os governos cardenista, peronista e varguista, onde os trabalhadores organizados surgem não como a massa manipulada normalmente estereotipada, mas como agentes políticos interessados que fazem opções pragmáticas deliberadas, cedendo em relação ao status de liberdade política (que sempre foi uma palavra vazia nos governos oligárquicos) em troca da concessão concreta de direitos de cidadania e de progresso na legislação trabalhista (CAPELATO, p. 152); Francisco Weffort também caminha nessa direção, analisando a idéia de manipulação das massas no varguismo:

“...E ai nos defrontamos com um outro limite fundamental da manipulação, que não teria sido possível se os interesses reais das classes populares não tivessem sido atendidos em alguma medida, sem o que não teria persistido o apoio que prestavam a lideres originários de outras classes sociais.” (WEFFORT)


            O populismo, portanto, se consolida atravéz de compromissos assumidos com diversos agentes sociais: ao mesmo tempo em que é apoiado pela burguesia, por conta das políticas desenvolvimentistas de industrialização, nacionalização de empresas e substituição de importações, recebe o apoio das classes trabalhadoras ao implantar uma legislação trabalhista e regularizar a ação dos sindicatos. O discurso antiimperialista e nacionalista garante o apoio dos movimentos de esquerda.

            A primeira relação que podemos estabelecer entre populismo e a Revolução Cubana é a de que ambos estão inseridos num processo estrutural que ocorre em toda a América Latina de contestação das idéias liberais. Esse processo reproduz a contestação do liberalismo que ocorria na própria Europa, com teses da esquerda e da direita favoráveis à construção de um estado centralizador capaz de dirigir o desenvolvimento econômico e intervir nos conflitos sociais e políticos (CAPELATTO, p. 128).
            Todos estes movimentos tiveram inicialmente um discurso reformista de modernização e contestação dos governos oligárquicos. O próprio Che Guevara declara:

            “Al fin y al cabo Fidel Castro era um aspirante a diputado por um partido burguês, tan burguês e tan respetable como podia ser el partido radical em la Argentina; que seguia lãs huellas de um líder desaparecido, Eduardo Chibas, de unas características que pudieramos hallar parecidas a las del mismo Irigoyen...” (GUEVARA, p. 414)

            Os movimentos evoluem de forma similar; tendo iniciado como movimentos político-partidários, são os vícios do jogo político das oligarquias que vão fazer com que estes movimentos radicalizem o discurso e partam para a luta armada (Revolução Mexicana, Revolução de 1930 no Brasil, golpe militar de 1943 na Argentina, Revolução Cubana em 1959). No entanto, com a ascensão ao poder, ocorre uma distinção clara entre os dois movimentos: os movimentos estudados contêm muitas especificidades, mas nos governos populistas a retórica revolucionária vai ficar restrita ao discurso; muito mais que um governo institucional, há um governo baseado na figura do líder supremo “em contato direto com as massas”. Ocorre a centralização do estado e a modernização da economia, mas atendendo basicamente uma agenda reformista de consolidação do capitalismo. Apenas o regime cubano vai optar por romper radicalmente com o modelo econômico e social e abraçar as idéias socialistas. Che chega a mencionar isso como elemento que atrasou a reação anti-revolucionária: as forças conservadoras estavam habituadas a movimentos com discursos incendiários que sentavam-se à mesa para negociar assim que chegavam ao poder:

            “Nunca lês pasó pó la cabeza que lo que Fidel Castro y nuestro movimiento dijeran tan ingênua y drasticamente fuera la verdad de lo que pensábamos hacer (...) traicionamos la imagem que ellos se hicieron de nosotros”. (GUEVARA, p. 415).

            Florestan Fernandes atribui o radicalismo cubano às especificidades históricas da ilha: a independência tardia em relação à Espanha e a imediata submissão à esfera de influência norte-americana impediram a formação de uma burguesia que investisse na construção de um projeto nacional de caráter liberal; o atrelamento da burguesia local aos interesses de uma potência estrangeira criou a situação incomum de caber às camadas populares a luta nacionalista, e impediu o que ocorria nos demais estados do continente, onde as “revoluções nacionais vitoriosas eram lideradas e freadas pelos estamentos privilegiados dominantes”; enquanto no continente os novos governos limitam-se a uma agenda reformista que privilegia interesses e valores sociais burgueses e à construção de um aparelho estatal nacional, Cuba embarca “na construção de uma ordem social inteiramente nova e socialista” (FERNANDES, p. 12 e 56-59).
            O texto de Florestan permite ainda uma reflexão comparativa com as idéias de Maria Capelato: enquanto a historiografia que se seguiu à queda dos regimes militares (fins de 1970 e início de 1980) realçava os regimes populistas da década de 1930 como os artífices do legado autoritário que desembocaria nas ditaduras, com seu discurso antiliberal e suas idéias direitistas de um regime autoritário que fosse capaz de impedir o avanço do comunismo, a intelectualidade do mesmo período saúda a Revolução Cubana como o fenômeno político mais original e esperançoso do continente, como uma antevisão do futuro comum:

            “Ela não é uma revolução dos “outros” – uma revolução dos cubanos. É o nosso quinhão da história coetânea e contemporânea. Cuba vive, no presente, o nosso futuro de outra maneira”. (idem, p. 07).

            E, como tal, a intelectiualidade é profundamente tolerante com os eventuais excessos do regime cubano:

            “Cuba foi o país no qual as condições difíceis se mostraram do modo mais difícil. Não podemos ignorar os fatos e, se há algo admirável com relação a Cuba, é a forma pela qual a revolução procurou subjugar e ultrapassar os fatos mais duros e adversos. Não se deve ignorar isso, se se quiser compreender, amar e servir à revolução cubana”. (idem, p. 06)

            Como destaca Maria Capelato, a historiografia do final do século passa a ver o populismo com outros olhos, enfatizando o apoio que os líderes populistas tinham dos movimentos esquerdistas e suas relações com as classes trabalhadoras, e o processo em que as intervenções do Estado e as novas formas de controle social logram atender interesses populares, principalmente na forma de direitos, cidadania e conquistas salariais (o salário real dos trabalhadores industriais, na Argentina peronista, cresceu 53% no periodo de 1946 a 1949). Nessa releitura o movimento sindical e os trabalhadores deixam de ser vistos como a massa manipulada e tornam-se agentes políticos ativos interessados num projeto pragmático; as reformas sociais do periodo populista e a maior representatividade política conquistada pelas classes trabalhadoras são na verdade um processo de democratização quando comparadas aos governos oligárquicos anteriores.
            Cuba, por outro lado (e isso é uma análise própria), segue no caminho inverso: o fascínio com a retórica socialista pertence ao passado; o regime cubano funcionou de fato como um regime tremendamente personalista similar às críticas mais ferrenhas feitas aos lideres populistas. A burguesia servil aos interesses norte-americanos cedeu lugar a uma nomeklatura cubana, uma elite de funcionários públicos de altos escalões cheios de privilégios. Os socialistas cubanos foram incapazes de formar uma nova classe de dirigentes, e o velho Fidel é substituído no comando pelo próprio irmão, num cenário onde claramente o espaço democrático é muito restrito.

            Há ainda outra relação interessante entre a Revolução Cubana e o populismo: ambos guardam íntima relação com o processo de intensa industrialização do continente; ambos experimentam processos de nacionalização de indústrias e políticas estatais de incentivo à substituição de importações; as semelhanças terminam aí: enquanto no continente  a ação estatal cria as condições estruturais para que a iniciativa privada realize a industrialização (principalmente financiada por grupos estrangeiros), Cuba vai optar por um processo de estatização da economia.
           

Bibliografia

CAPELATTO, Maria H. R. Populismo latino-americano em discusssão; in FERREIRA, J. (org.). O populismo e sua história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

FERNANDES, Florestan. Da guerrilha ao socialismo: a revolução cubana. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979.

GUEVARA, E. C. Latianoamérica: la revolucion necessária y otros escritos. Cuba :1960.

SAINT-PIERRE, Hector L. A Política Armada: fundamentos da Guerra revolucionária. São Paulo: Ed. Unesp, 1999.

WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.


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