Ano passado tivemos o prazer de
receber o historiador Ilmar Rohloff Matos, autor de Tempo Saquarema, por ocasião de nossa semana de História; num dado
momento de sua exposição, enumerando alguns conselhos aos futuros historiadores
que o ouviam, ele declarou: “não basta debruçar-se sobre fontes; o historiador
deve viajar até o local dos fatos, tomar contato com o ambiente que presenciou
os acontecimentos”.
Concordo integralmente com ele;
parece que poucas coisas têm tamanha força de colocar um historiador em
comunicação com suas musas inspiradoras como essa presença física no lugar do
objeto estudado. A cultura material é na verdade um imenso arquivo de
informações sobre sua época aguardando para ser acessado e estabelecer um novo
diálogo com o presente.
Nossa recente viagem ao centro
histórico de Petrópolis foi particularmente rica em “acessos” e “diálogos”. O
patrimônio observado é tão vasto que transcende nossa capacidade de assimilação.
Confesso que algumas conexões só puderam ser estabelecidas vários dias após o
regresso; há uma em especial que gostaria de compartilhar com os leitores: por
conta do enorme movimento do feriado, nosso grupo foi forçado a fazer um giro
acelerado pelo interior do Museu Imperial. Passamos pelos diferentes salas
literalmente à toque de caixa, quase sem tempo de assimilar o deslumbramento
produzido por peças tão maravilhosas.
Não foram os grandes ícones do
acervo, como as jóias, o cetro e a coroa imperial cravejada de diamantes, no
entanto, que me instigaram o espírito; minha atenção foi despertada, na
verdade, por dois magníficos berços expostos numa modesta sala do museu; os
berços, ovalados, eram sustentados por uma magnífica estrutura, creio que de madeira
entalhada; são muito parecidos, a não ser por pequenos elementos decorativos;
um destes detalhes específicos é a figura de um dragão alado. No primeiro berço
ele é visto apoiado nos pés do berço; no segundo ele encima todo o conjunto,
como se seu papel ali fosse velar o tempo todo por seu ocupante.
A guia nos informou que se tratava
dos berços utilizados pelos dois pequenos príncipes imperiais, Afonso Pedro
(1845-1847) e Pedro Afonso (1848-1850). Curioso, indaguei a ela a razão do
dragão; ouvi em resposta que era um símbolo do poder imperial, associado desde
o início da vida à figura do herdeiro da coroa.
Isso foi tudo. O passeio continuou
pelo museu, e seguiram-se dias atarefados percorrendo o centro histórico da
cidade. Foi apenas com o esforço de redigir um relatório do passeio, já em
casa, que aquele par de berços começou a se revelar; as imagens eram tão
insistentes que uma colega espiritualista seguramente veria algum tipo de
comunicação mediúnica no que ocorria.
Houve uma resistência inicial de
minha parte nisso tudo. Estava trabalhando num texto que interpretava
Petrópolis a partir de uma leitura política e ideológica; pedras e construções
expressando o imaginário político, religioso e social. Não havia lugar ali para
aquele incômodo par de berços!
Bom. O fato é que o texto não saía;
havia empacado feito um burrico manhoso. Algo que parecia inicialmente tão
fácil convertera-se numa batalha de titãs! Deixei então a mesa de trabalho e
fui caminhar um pouco, isso sempre me ajuda a clarear as idéias. Nada como
caminhar tranquilamente por uma praça tranqüila para restabelecer o contato com
a inspiração; isso seguramente vai parecer estranho, mas me ocorreu que o texto
estava parado por conta dos berços; algo ali pedia de alguma forma para se
expressar. Então propus um acordo a estes manes
literários: se eu conseguisse concluir meu texto histórico, reservaria um texto
literário para eles.
Feliz solução! As idéias voltaram a
se encadear e pude então expressar uma humilde reflexão sobre o imaginário político
das construções de Petrópolis. Salvo o arquivo, e cansado pelo esforço feito,
não conseguia, contudo, deixar o computador: meus dedos estavam curiosamente
prontos para redigir um novo texto que me chegava à mente aos borbotões, feito
uma enxurrada de idéias.
É, talvez minha amiga tenha alguma
razão. Aquilo que captei na aura dos berços e que pedia para se expressar era
uma espécie de desabafo, um “por para fora”, o compartilhar de um tremendo
drama humano.
Dom
Pedro II não teve o que chamaríamos de uma vida privada feliz; perdeu a mãe
pouco depois de nascer, em 1825. Ele então se encheu de afetos pela madrasta,
que partiu para a Europa com a renúncia do pai, em 1831. Permaneceu sozinho no
Brasil, rodeado de pessoas desconhecidas e pelas intrigas da corte; desprovido
de vida familiar e afeto. Alçado precocemente à liderança do país, em 1841
(tinha então 15 anos de idade), foi literalmente enganado e casado por
procuração com uma princesa italiana que ele nunca vira antes, em 1843.
Esse doloroso calvário pessoal
conheceu, afinal, um pequeno momento luminoso. Foi então que nasceu Afonso
Pedro, em 1845; o sisudo imperador transfigura-se, soluça de alegria e carrega
o rebento com orgulho em seus braços. Acompanha-lhe o desenvolvimento e faz
menção constante do filho em suas cartas para Portugal; não que despreze as
filhas, muito pelo contrário, mas temos que ver a coisa toda a partir do
horizonte de seu tempo: o filho varão representa a continuidade da dinastia!
Então, com pouco mais de dois anos,
Afonso Pedro contraiu febre amarela e morreu; o episódio é narrado pelo
imperador numa carta à madrasta:
"Com a mais pungente dor,
participo-lhe que meu caro Afonsinho, seu afilhado, morreu desgraçadamente de
convulsões, que lhe duraram cinco horas sem interrupção, no dia 4 do passado, e
que há poucos dias Isabelinha se achou no perigo dum forte ataque de convulsões
que muito me assustou".
O choque foi tremendo, avassalador.
Dom Pedro manteve um retrato do pequeno infante em sua mesa de trabalho até o
dia em que foi expulso do Brasil, após o golpe republicano.
O ano de 1848 trouxe, todavia, um
novo rastro de luz; nascia então o príncipe Pedro Afonso. A inversão dos nomes
é homenagem evidente ao falecido principezinho!
Não ficou clara para mim a
disposição dos berços, a quem exatamente pertenciam cada um; prefiro acreditar
numa ordem cronológica: o mais próximo da entrada é o do primeiro infante,
Afonso Pedro; o segundo berço, evidentemente, corresponderia a Pedro Afonso.
Isso também faria sentido por conta da disposição dos dragões: no primeiro
berço ele está apoiado num dos pés, discretamente; no segundo berço, porém, ele
domina todo o conjunto, observa atentamente tudo que ocorre no móvel. É como se
a vigilância houvesse sido redobrada: este haverá de vingar!
Os esforços foram baldados, todavia:
Pedro Afonso faleceu com pouco mais de um ano de idade, vítima de febres...
O dragão simboliza a própria
dinastia dos Bragança; aparece originalmente nos brasões na cor verde, com as
asas abertas, a Serpe Alada! Assim pode ser vista na base do cetro dourado de
Dom Pedro. Os jornais da época diziam que o ramo brasileiro da dinastia também
era vítima da “sina dos poucos varões” que a tempos acometia o tronco português.
O desabafo que senti naquele contato
com as peças parecia vir exatamente desse impotente dragão que agora guarda um
berço vazio; um misto de decepção e ironia, na verdade; a voz é ácida: “Veja
você”, ele diz; tantas análises estruturais, tanto falatório sobre questões
sociais e econômicas, o papel dos militares, o papel dos eruditos, e não
conseguem se dar conta de algo tão simples, tão humano: o que pôs fim ao
Império Brasileiro é o mesmo elemento que acabou com tantas poderosas dinastias
no passado, que é a força e ao mesmo tempo o elo mais frágil do sistema
monárquico! O príncipe herdeiro morreu! A continuidade natural foi negada aos
Bragança no Brasil!”
“Digam o que quiserem os adeptos das
explicações estruturais, mas para o povo brasileiro em pleno século XIX
permanecia viva a idéia do imperador como símbolo vivo e encarnação do Estado;
tivesse vingado um dos rebentos de Dom Pedro, a ele se estenderiam naturalmente
o respeito e o amor intenso que o velho imperador gozava junto a seus súditos.
Entraríamos em pleno século XX e sabe Deus quantos Pedros ainda cingiriam uma
coroa em terras brasileiras!”
O discurso do pequeno dragão evoca
imediatamente uma outra obra de Petrópolis. Numa pequena praça da Rua do
Imperador, Dom Pedro II foi retratado numa estátua de bronze. Está sentado numa
cadeira, já bastante idoso; tem um livro na mão esquerda e a cabeça apoiada na
mão direita, pensativo. O rosto expressa preocupação, dúvidas. Na ocasião da
excursão alguém brincou: “ele está se perguntando como vai salvar o Império”.
Eu havia concordado, naquele momento,
parecia fazer sentido (admitindo-se que o artista de fato o está representando
enquanto imperador; a idade avançada pode também sugerir o exílio).
Agora, pensando no que me diz o
dragão bragantino, sou tentado a imaginar que aquela expressão carregada é
muito mais de resignação; é como se ele pensasse: “não há mais o que fazer;
todas minhas esperanças estiveram depositadas naquele berço. Foi uma perda
irreparável; estou agora velho e alquebrado, cansado. Não há ao meu lado o
príncipe que me apoiaria e daria esperanças; um estrangeiro jamais será aceito
pelo povo. Já nada mais me interessa, e minha inércia é a única força que
alimenta os golpistas; bastaria um único gesto firme para que voltassem
correndo para seus buracos. Mas para quê isso agora, se a monarquia não tem
futuro?”
O dragão deixou sua ironia mais
ácida para o final: “Você esteve pesquisando símbolos republicanos; pois bem,
aqui está um que retrataria à perfeição seu triunfo: dois pequenos caixões de
cores brancas, pequenos, com o brasão imperial na tampa. Viva a República!”