O propósito deste trabalho é analisar a questão da representação do gênero feminino na antiguidade romana a partir de um trecho do Satyricon de Petrônio, a anedota sobre “a dama de Éfeso”. Subsidiariamente é possível também tecer considerações sobre relações de poder e extratificação social no mesmo período.
1- Abordagem
Teórica
O estudo de uma obra literária como
fonte de informação sobre o imaginário e a realidade social de um determinado
momento histórico partiu das considerações feitas nos trabalhos de Glaydson e
Garraffoni:
“O texto literário constitui, portanto, uma forma de
registro histórico, diferindo deste propriamente dito pela sua não intenção de
assim se constituir.(...) Pensar a Arte de Amar e o Satyricon como veículos de
informações históricas de seus contextos implica, necessariamente, em uma
concepção destas obras como produtos de um imaginário social a ser
decodificado, interpretado, uma vez que lida, simultaneamente, com questões
como liberdade e poder (...); nesse sentido o implícito do discurso está
carregado de múltiplos pensamentos encobertos”. (SILVA, Glaydson, p. 25)
É necessário recorrer à
interdisciplinaridade para uma correta análise do material; em Garrafoni/Furnari
vemos uma descrição do esforço para reconstituir a estrutura lingüística do
Satyricon a partir de uma análise filológica, onde concluem:
“Ao estudar o episódio da Dama de Éfeso, tomaremos como
pressuposto, portanto, que a literatura é uma linguagem e que, para
compreendê-la, torna-se necessário que recorramos às alegorias, seus
significantes e significados. Por meio do questionamento do texto e da análise
das estruturas e vocabulário, pretendemos estabelecer um diálogo com os
personagens para explicitar os sentidos que produzem.” ( GARRAFONI/FURNARI, 94)
O
ferramental da história a partir da interdisciplinaridade permite ao
historiador entender que um texto literário, como a sátira, possui
características discursivas específicas, permeadas pelos interesses e visões de
mundo daqueles que a criaram (GARRAFONI 2009, p. 94). Foi exatamente a falta de
leitura crítica dos textos clássicos (como Petrônio, Apuleio e Juvenal) que
produziu a interpretação vigente no final do século XIX, da população romana
como uma massa amorfa, sem vontade própria, fútil, que não gosta de trabalhar e
gasta todas suas energias na busca desenfreada do prazer. Ao passo que uma
leitura crítica permite o acesso às camadas sociais e/ou identitárias menos
favorecidas do mundo romano e sua ação como sujeitos de sua história em
dinâmicas de resistência, acomodação e negociação. O estudo filológico a partir
dos textos em latim revelou, ainda, que no Satyricon Petrônio dá voz aos
diferentes segmentos sociais retratados em sua obra, reproduzindo sua linguagem
social com todos valores orais e populares, com toda vivacidade e crueza que
lhe são peculiares, permitindo o contato com todo o universo simbólico presente
nas expressões cotidianas; como ressalta Paulo Leminski, “essa crueza da
linguagem de Petrônio sempre foi maquilada nas traduções para as línguas
modernas, onde giros eufemísticos, ditados pelo moralismo, substituem o
verdadeiro nome das coisas”. (SILVA, Glaydson, p. 106-107)
2- A Dama de
Éfeso
A anedota surge durante uma viagem
de navio empreendida pelos personagens principais do livro. Encólpio, o
narrador das aventuras, descreve a anedota como um esforço de Eumolpo em
destacar-se na conversação através de ditos espirituais, durante as quais “(...)
começou a dizer mil bobagens sobre a leviandade das mulheres, sua facilidade em
apaixonar-se, sua presteza em esquecer amantes.”(PETRONIO, CX, p. 150). Eumolpo,
por sua vez, enuncia sua tese e a atualidade do assunto, declarando:
“Não há uma única mulher, por mais fiel que seja, que uma
nova paixão não possa levar aos maiores excessos. Não é preciso, para provar o
que eu digo, recorrer às antigas tragédias, citar nomes famosos nos séculos
passados. Para isso, contar-vos-ei um episódio ocorrido em nossos dias.” (idem)
Fazendo menção a um episódio atual,
o autor dota a narrativa de maior capacidade persuasiva (LEÃO, p. 80).
Garrafoni e Funari chamam a atenção
para a construção discursiva do autor; eles chamam a atenção inicialmente para
as expressões que ele emprega ao referir-se à dama: no início da narrativa ela
é descrita como matrona (senhora) com pudicitia (grande reputação
de castidade) a ponto de ser modelo para outras feminae (mulheres); ao
expressar enorme dor pela morte do marido é definida como singularis exempli
femina (mulher de exemplo singular). Ela está, nesse primeiro momento,
encarnando o imaginário da virtude feminina herdado do pensamento tradicional
romano, e enquanto isso o autor se refere a ela como matrona; o termo deriva de
mater (mãe), indicativo do principal papel que lhe cabe na sociedade romana
(SILVA, p. 896). No momento seguinte, em que chama a atenção do soldado romano,
ela é agora a pulcherrima mulier (bela mulher); a expressão mulier
era utIlizada para descrever a mulher de baixa extração, o extremo oposto da
elevada matrona (FURNARI, GARRAFONI, p. 113). Nessa primeira visão a imagem da
mulher age intensamente sobre a imaginação do soldado, numa interessante
associação da imagem feminina aos mistérios do mundo subterrâneo (monstro
infernisque imaginibus). Na percepção seguinte o soldado entende a cena a
partir do imaginário da época: trata-se de uma mulher consumida de desejo pelo
marido falecido. Ela está agora sendo descrita com um termo médio e de amplo
alcance (mulher, feminam), nem tão alto como matrona ou tão baixo como mulier.
Descrita como feminam ela é imediatamente associada à sua característica
central, o desejo (desiderium). Glaydson também apóia essa leitura: a
despeito das especificidades de sua posição social, todas mulheres possuem uma
natureza comum, centrada no desejo (SILVA, Glaydson, p. 108).