Creio
que este livro de Bárbara Tuchman é um exemplo excelente de como a história, a
despeito de todas suas pretensões científicas, é uma atividade essencialmente
literária. O historiador de sucesso é, em grande medida, um magnífico narrador.
Uma boa narrativa, infelizmente, exige um roteiro bem definido; em outras
palavras, certezas. Algo no estilo do “foi exatamente assim que as coisas
aconteceram”.
O
historiador gosta de chamar a atenção para sua pesquisa documental sempre que
quer realçar de onde emana a autoridade com que faz algumas declarações;
Barbara não foge à regra: “todas as condições de tempo, pensamentos ou
sentimentos e estados de espírito públicos ou particulares, das páginas
seguintes, têm uma base documental”. É apenas lamentável que ela não seja tão
franca em apresentar as escolhas que fez quando a documentação era omissa ou
contraditória em algumas questões importantes.
Não
quero de forma alguma tirar o mérito da obra; “Canhões de Agosto” ganhou o
Prêmio Pulitzer de 1962 e é seguramente uma das melhores obras sobre os
momentos iniciais da Primeira Guerra Mundial; o único livro que se aproxima é
“Agosto 1914”,
de Soljenitzin, que trabalha com um recorte temporal e geográfico muito mais
específico, da invasão da Prússia por forças russas no inicio do conflito,
enquanto Bárbara cobre os acontecimentos das duas frentes.
A
estratégia discursiva de Bárbara Tuchman pode ser resumida em fazer coro com a
versão largamente aceita sobre os fatos, embora ela busque demonstrar que faz
isso a partir de uma análise isenta dos fatos. Por exemplo, a ênfase está posta
nos planos alemães de violar a neutralidade da Bélgica, e na agressividade
alemã em episódios como a crise de Agadir, todos eles argumentos
muito comuns em narrativas sobre o cenário que conduz à guerra mundial.
Curiosamente, pouca atenção é dada à aliança ofensiva que os franceses
estabeleceram com o Império Russo; a autora segue o caminho tradicional: era a estratégia
mais eficiente para evitar uma nova invasão alemã, criando a certeza da
abertura de uma segunda frente. Bárbara prefere ignorar o fato de que os
franceses não ignoravam o fato de que a aliança russo-francesa praticamente
obrigava os alemães a tomar a ofensiva à menor ameaça de mobilização por parte
de seus vizinhos, como única forma de evitar um conflito prolongado onde seu país
seguramente seria derrotado. Mais: os franceses sabiam que os alemães estavam
planejando uma grande ofensiva para o intervalo de tempo necessário para os
russos mobilizarem suas tropas, e estavam investindo pesado em ferrovias russas
que pudessem reduzir esse tempo; isso evidentemente estava sendo interpretado
pelos alemães como uma ameaça.
Embora
seja evidente que os franceses façam planos para recuperar Estrasburgo, ela
prefere ver os franceses do inicio do século XX de forma simpática e bonachona;
estão ocupados em administrar seu papel de centro cultural do mundo e em
administrar seu vasto império colonial. Quando na verdade a única coisa que
dissuade os franceses de atacar é a evidente superioridade militar dos alemães;
se os alemães vivessem algum tipo de situação interior semelhante à dos russos
em 1905, não resta dúvida de que os franceses cruzariam a fronteira.
Há
uma disparidade na forma como se pesam a violação da neutralidade belga, por
parte dos alemães, e a violação da soberania turca no episódio de apresamento
dos navios de guerra turcos que estavam sendo construídos em estaleiros
ingleses; as duas medidas são indicativos claros de uma visão européia: o
pragmatismo militar está acima de considerações diplomáticas.
Por
outro lado, acredito que Bárbara trata com bastante equilíbrio a questão das
atrocidades cometidas por forças alemãs em território belga, desconstruindo
alguns mitos criados pela publicidade aliada: ainda que não se possa negar uma
política deliberada de terror contra populações civis, com a intenção de
solapar rapidamente a resistência inimiga, as ações decorrem em boa medida por
conta da inexperiência das tropas e um medo paranóico de ação de
franco-atiradores na retaguarda.
Finalmente,
Bárbara deixa evidente, ainda que procure minimizar isso em seu texto, que a
derrota alemã decorre de um enorme erro de avaliação por parte do comando alemão: crendo que as forças
francesas estavam derrotadas e debandando, enfraqueceram sua ala direita com o
envio de tropas para a Prússia e mantiveram tropas num ataque frontal pelo
centro. A tenaz que avançava pela direita só não foi detida antes do Marne por
conta da impressionante incapacidade de se coordenar uma contra-ofensiva entre
as forças franco-inglesas presentes na fronteira belgo-francesa. Não ouve um
“milagre do Marne”, uma vez que os franceses haviam então alcançado
superioridade numérica, suas linhas de suprimento haviam sido encurtadas e
estavam dispondo de tropas frescas, enquanto os alemães estavam em desvantagem
numérica, desgastados por horas de marchas forçadas (fruto da teimosia com que
von Kluck estava a dois dias desobedecendo ordens de fazer alto) e com suas
linhas de provisão excessivamente distendidas; na verdade, o milagre foi de
fato que os alemães conseguissem evitar ser completamente cercados e destruídos
no Marne, o que poderia ter conduzido a um rápido fim do conflito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário