sábado, 16 de junho de 2012

A respeito de um dragão no berço de uma criança


            Ano passado tivemos o prazer de receber o historiador Ilmar Rohloff Matos, autor de Tempo Saquarema, por ocasião de nossa semana de História; num dado momento de sua exposição, enumerando alguns conselhos aos futuros historiadores que o ouviam, ele declarou: “não basta debruçar-se sobre fontes; o historiador deve viajar até o local dos fatos, tomar contato com o ambiente que presenciou os acontecimentos”.
            Concordo integralmente com ele; parece que poucas coisas têm tamanha força de colocar um historiador em comunicação com suas musas inspiradoras como essa presença física no lugar do objeto estudado. A cultura material é na verdade um imenso arquivo de informações sobre sua época aguardando para ser acessado e estabelecer um novo diálogo com o presente.
            Nossa recente viagem ao centro histórico de Petrópolis foi particularmente rica em “acessos” e “diálogos”. O patrimônio observado é tão vasto que transcende nossa capacidade de assimilação. Confesso que algumas conexões só puderam ser estabelecidas vários dias após o regresso; há uma em especial que gostaria de compartilhar com os leitores: por conta do enorme movimento do feriado, nosso grupo foi forçado a fazer um giro acelerado pelo interior do Museu Imperial. Passamos pelos diferentes salas literalmente à toque de caixa, quase sem tempo de assimilar o deslumbramento produzido por peças tão maravilhosas.
            Não foram os grandes ícones do acervo, como as jóias, o cetro e a coroa imperial cravejada de diamantes, no entanto, que me instigaram o espírito; minha atenção foi despertada, na verdade, por dois magníficos berços expostos numa modesta sala do museu; os berços, ovalados, eram sustentados por uma magnífica estrutura, creio que de madeira entalhada; são muito parecidos, a não ser por pequenos elementos decorativos; um destes detalhes específicos é a figura de um dragão alado. No primeiro berço ele é visto apoiado nos pés do berço; no segundo ele encima todo o conjunto, como se seu papel ali fosse velar o tempo todo por seu ocupante.
            A guia nos informou que se tratava dos berços utilizados pelos dois pequenos príncipes imperiais, Afonso Pedro (1845-1847) e Pedro Afonso (1848-1850). Curioso, indaguei a ela a razão do dragão; ouvi em resposta que era um símbolo do poder imperial, associado desde o início da vida à figura do herdeiro da coroa.
            Isso foi tudo. O passeio continuou pelo museu, e seguiram-se dias atarefados percorrendo o centro histórico da cidade. Foi apenas com o esforço de redigir um relatório do passeio, já em casa, que aquele par de berços começou a se revelar; as imagens eram tão insistentes que uma colega espiritualista seguramente veria algum tipo de comunicação mediúnica no que ocorria.
            Houve uma resistência inicial de minha parte nisso tudo. Estava trabalhando num texto que interpretava Petrópolis a partir de uma leitura política e ideológica; pedras e construções expressando o imaginário político, religioso e social. Não havia lugar ali para aquele incômodo par de berços!
            Bom. O fato é que o texto não saía; havia empacado feito um burrico manhoso. Algo que parecia inicialmente tão fácil convertera-se numa batalha de titãs! Deixei então a mesa de trabalho e fui caminhar um pouco, isso sempre me ajuda a clarear as idéias. Nada como caminhar tranquilamente por uma praça tranqüila para restabelecer o contato com a inspiração; isso seguramente vai parecer estranho, mas me ocorreu que o texto estava parado por conta dos berços; algo ali pedia de alguma forma para se expressar. Então propus um acordo a estes manes literários: se eu conseguisse concluir meu texto histórico, reservaria um texto literário para eles.
            Feliz solução! As idéias voltaram a se encadear e pude então expressar uma humilde reflexão sobre o imaginário político das construções de Petrópolis. Salvo o arquivo, e cansado pelo esforço feito, não conseguia, contudo, deixar o computador: meus dedos estavam curiosamente prontos para redigir um novo texto que me chegava à mente aos borbotões, feito uma enxurrada de idéias.
            É, talvez minha amiga tenha alguma razão. Aquilo que captei na aura dos berços e que pedia para se expressar era uma espécie de desabafo, um “por para fora”, o compartilhar de um tremendo drama humano.
            Dom Pedro II não teve o que chamaríamos de uma vida privada feliz; perdeu a mãe pouco depois de nascer, em 1825. Ele então se encheu de afetos pela madrasta, que partiu para a Europa com a renúncia do pai, em 1831. Permaneceu sozinho no Brasil, rodeado de pessoas desconhecidas e pelas intrigas da corte; desprovido de vida familiar e afeto. Alçado precocemente à liderança do país, em 1841 (tinha então 15 anos de idade), foi literalmente enganado e casado por procuração com uma princesa italiana que ele nunca vira antes, em 1843.
            Esse doloroso calvário pessoal conheceu, afinal, um pequeno momento luminoso. Foi então que nasceu Afonso Pedro, em 1845; o sisudo imperador transfigura-se, soluça de alegria e carrega o rebento com orgulho em seus braços. Acompanha-lhe o desenvolvimento e faz menção constante do filho em suas cartas para Portugal; não que despreze as filhas, muito pelo contrário, mas temos que ver a coisa toda a partir do horizonte de seu tempo: o filho varão representa a continuidade da dinastia!
            Então, com pouco mais de dois anos, Afonso Pedro contraiu febre amarela e morreu; o episódio é narrado pelo imperador numa carta à madrasta:

            "Com a mais pungente dor, participo-lhe que meu caro Afonsinho, seu afilhado, morreu desgraçadamente de convulsões, que lhe duraram cinco horas sem interrupção, no dia 4 do passado, e que há poucos dias Isabelinha se achou no perigo dum forte ataque de convulsões que muito me assustou".

            O choque foi tremendo, avassalador. Dom Pedro manteve um retrato do pequeno infante em sua mesa de trabalho até o dia em que foi expulso do Brasil, após o golpe republicano.
            O ano de 1848 trouxe, todavia, um novo rastro de luz; nascia então o príncipe Pedro Afonso. A inversão dos nomes é homenagem evidente ao falecido principezinho!
            Não ficou clara para mim a disposição dos berços, a quem exatamente pertenciam cada um; prefiro acreditar numa ordem cronológica: o mais próximo da entrada é o do primeiro infante, Afonso Pedro; o segundo berço, evidentemente, corresponderia a Pedro Afonso. Isso também faria sentido por conta da disposição dos dragões: no primeiro berço ele está apoiado num dos pés, discretamente; no segundo berço, porém, ele domina todo o conjunto, observa atentamente tudo que ocorre no móvel. É como se a vigilância houvesse sido redobrada: este haverá de vingar!
            Os esforços foram baldados, todavia: Pedro Afonso faleceu com pouco mais de um ano de idade, vítima de febres...
            O dragão simboliza a própria dinastia dos Bragança; aparece originalmente nos brasões na cor verde, com as asas abertas, a Serpe Alada! Assim pode ser vista na base do cetro dourado de Dom Pedro. Os jornais da época diziam que o ramo brasileiro da dinastia também era vítima da “sina dos poucos varões” que a tempos acometia o tronco português.
            O desabafo que senti naquele contato com as peças parecia vir exatamente desse impotente dragão que agora guarda um berço vazio; um misto de decepção e ironia, na verdade; a voz é ácida: “Veja você”, ele diz; tantas análises estruturais, tanto falatório sobre questões sociais e econômicas, o papel dos militares, o papel dos eruditos, e não conseguem se dar conta de algo tão simples, tão humano: o que pôs fim ao Império Brasileiro é o mesmo elemento que acabou com tantas poderosas dinastias no passado, que é a força e ao mesmo tempo o elo mais frágil do sistema monárquico! O príncipe herdeiro morreu! A continuidade natural foi negada aos Bragança no Brasil!”
            “Digam o que quiserem os adeptos das explicações estruturais, mas para o povo brasileiro em pleno século XIX permanecia viva a idéia do imperador como símbolo vivo e encarnação do Estado; tivesse vingado um dos rebentos de Dom Pedro, a ele se estenderiam naturalmente o respeito e o amor intenso que o velho imperador gozava junto a seus súditos. Entraríamos em pleno século XX e sabe Deus quantos Pedros ainda cingiriam uma coroa em terras brasileiras!”
            O discurso do pequeno dragão evoca imediatamente uma outra obra de Petrópolis. Numa pequena praça da Rua do Imperador, Dom Pedro II foi retratado numa estátua de bronze. Está sentado numa cadeira, já bastante idoso; tem um livro na mão esquerda e a cabeça apoiada na mão direita, pensativo. O rosto expressa preocupação, dúvidas. Na ocasião da excursão alguém brincou: “ele está se perguntando como vai salvar o Império”.
            Eu havia concordado, naquele momento, parecia fazer sentido (admitindo-se que o artista de fato o está representando enquanto imperador; a idade avançada pode também sugerir o exílio).
            Agora, pensando no que me diz o dragão bragantino, sou tentado a imaginar que aquela expressão carregada é muito mais de resignação; é como se ele pensasse: “não há mais o que fazer; todas minhas esperanças estiveram depositadas naquele berço. Foi uma perda irreparável; estou agora velho e alquebrado, cansado. Não há ao meu lado o príncipe que me apoiaria e daria esperanças; um estrangeiro jamais será aceito pelo povo. Já nada mais me interessa, e minha inércia é a única força que alimenta os golpistas; bastaria um único gesto firme para que voltassem correndo para seus buracos. Mas para quê isso agora, se a monarquia não tem futuro?”
            O dragão deixou sua ironia mais ácida para o final: “Você esteve pesquisando símbolos republicanos; pois bem, aqui está um que retrataria à perfeição seu triunfo: dois pequenos caixões de cores brancas, pequenos, com o brasão imperial na tampa. Viva a República!”

2 comentários:

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  2. Triste verdade. A perda dos príncipes, num tempo em que o homem ainda era visto como o "chefe da casa" foi muito forte naquele contexto. A princesa Isabel, Carola e obtusa, circundada pelo marido francês, não daria conta do Império. Perdeu Pedro II e perdermos nós a viver numa república de sicofantas!

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