quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Análise da representação da mulher no mundo romano a partir de Petrônio


            O propósito deste trabalho é analisar a questão da representação do gênero feminino na antiguidade romana a partir de um trecho do Satyricon de Petrônio, a anedota sobre “a dama de Éfeso”.   Subsidiariamente é possível também tecer considerações sobre relações de poder e extratificação social no mesmo período.

1- Abordagem Teórica
            O estudo de uma obra literária como fonte de informação sobre o imaginário e a realidade social de um determinado momento histórico partiu das considerações feitas nos trabalhos de Glaydson e Garraffoni:
“O texto literário constitui, portanto, uma forma de registro histórico, diferindo deste propriamente dito pela sua não intenção de assim se constituir.(...) Pensar a Arte de Amar e o Satyricon como veículos de informações históricas de seus contextos implica, necessariamente, em uma concepção destas obras como produtos de um imaginário social a ser decodificado, interpretado, uma vez que lida, simultaneamente, com questões como liberdade e poder (...); nesse sentido o implícito do discurso está carregado de múltiplos pensamentos encobertos”. (SILVA, Glaydson, p. 25)
            É necessário recorrer à interdisciplinaridade para uma correta análise do material; em Garrafoni/Furnari vemos uma descrição do esforço para reconstituir a estrutura lingüística do Satyricon a partir de uma análise filológica, onde concluem:
“Ao estudar o episódio da Dama de Éfeso, tomaremos como pressuposto, portanto, que a literatura é uma linguagem e que, para compreendê-la, torna-se necessário que recorramos às alegorias, seus significantes e significados. Por meio do questionamento do texto e da análise das estruturas e vocabulário, pretendemos estabelecer um diálogo com os personagens para explicitar os sentidos que produzem.” ( GARRAFONI/FURNARI, 94)
            O ferramental da história a partir da interdisciplinaridade permite ao historiador entender que um texto literário, como a sátira, possui características discursivas específicas, permeadas pelos interesses e visões de mundo daqueles que a criaram (GARRAFONI 2009, p. 94). Foi exatamente a falta de leitura crítica dos textos clássicos (como Petrônio, Apuleio e Juvenal) que produziu a interpretação vigente no final do século XIX, da população romana como uma massa amorfa, sem vontade própria, fútil, que não gosta de trabalhar e gasta todas suas energias na busca desenfreada do prazer. Ao passo que uma leitura crítica permite o acesso às camadas sociais e/ou identitárias menos favorecidas do mundo romano e sua ação como sujeitos de sua história em dinâmicas de resistência, acomodação e negociação. O estudo filológico a partir dos textos em latim revelou, ainda, que no Satyricon Petrônio dá voz aos diferentes segmentos sociais retratados em sua obra, reproduzindo sua linguagem social com todos valores orais e populares, com toda vivacidade e crueza que lhe são peculiares, permitindo o contato com todo o universo simbólico presente nas expressões cotidianas; como ressalta Paulo Leminski, “essa crueza da linguagem de Petrônio sempre foi maquilada nas traduções para as línguas modernas, onde giros eufemísticos, ditados pelo moralismo, substituem o verdadeiro nome das coisas”. (SILVA, Glaydson, p. 106-107)

2- A Dama de Éfeso 
            A anedota surge durante uma viagem de navio empreendida pelos personagens principais do livro. Encólpio, o narrador das aventuras, descreve a anedota como um esforço de Eumolpo em destacar-se na conversação através de ditos espirituais, durante as quais “(...) começou a dizer mil bobagens sobre a leviandade das mulheres, sua facilidade em apaixonar-se, sua presteza em esquecer amantes.”(PETRONIO, CX, p. 150). Eumolpo, por sua vez, enuncia sua tese e a atualidade do assunto, declarando:
“Não há uma única mulher, por mais fiel que seja, que uma nova paixão não possa levar aos maiores excessos. Não é preciso, para provar o que eu digo, recorrer às antigas tragédias, citar nomes famosos nos séculos passados. Para isso, contar-vos-ei um episódio ocorrido em nossos dias.” (idem)
            Fazendo menção a um episódio atual, o autor dota a narrativa de maior capacidade persuasiva (LEÃO, p. 80).
            Garrafoni e Funari chamam a atenção para a construção discursiva do autor; eles chamam a atenção inicialmente para as expressões que ele emprega ao referir-se à dama: no início da narrativa ela é descrita como matrona (senhora) com pudicitia (grande reputação de castidade) a ponto de ser modelo para outras feminae (mulheres); ao expressar enorme dor pela morte do marido é definida como singularis exempli femina (mulher de exemplo singular). Ela está, nesse primeiro momento, encarnando o imaginário da virtude feminina herdado do pensamento tradicional romano, e enquanto isso o autor se refere a ela como matrona; o termo deriva de mater (mãe), indicativo do principal papel que lhe cabe na sociedade romana (SILVA, p. 896). No momento seguinte, em que chama a atenção do soldado romano, ela é agora a pulcherrima mulier (bela mulher); a expressão mulier era utIlizada para descrever a mulher de baixa extração, o extremo oposto da elevada matrona (FURNARI, GARRAFONI, p. 113). Nessa primeira visão a imagem da mulher age intensamente sobre a imaginação do soldado, numa interessante associação da imagem feminina aos mistérios do mundo subterrâneo (monstro infernisque imaginibus). Na percepção seguinte o soldado entende a cena a partir do imaginário da época: trata-se de uma mulher consumida de desejo pelo marido falecido. Ela está agora sendo descrita com um termo médio e de amplo alcance (mulher, feminam), nem tão alto como matrona ou tão baixo como mulier. Descrita como feminam ela é imediatamente associada à sua característica central, o desejo (desiderium). Glaydson também apóia essa leitura: a despeito das especificidades de sua posição social, todas mulheres possuem uma natureza comum, centrada no desejo (SILVA, Glaydson, p. 108).

Relações entre as teses de Walter Benjamin e a obra de Josep Fontana, identificando em que aspectos as teses inspiraram as idéias centrais e a estrutura do livro História: análise do passado e projeto social.


       Walter Benjamin revela-se um crítico feroz do historicismo; para ele a fixação por conhecer o passado como de fato ele foi não possui nenhuma relação com a articulação histórica (VI). O autor a história como um intenso processo de construção do presente sobre o passado (XIV); esse passado carregado deagorastem um imenso potencial que pode ser canalizado de duas maneiras: na primeira a História funciona como discurso de defesa do status quo, como sua justificação; Benjamin chama isso de empatia do historiador pelo vencedor (“a empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores”; VII); isso produz umainércia do coração” (VII) que vai levar ao conformismo da social-democracia, ao encantamento com o desenvolvimento da técnica e ao culto moral do trabalho (XI); em resumo, à imobilização (XVII). O segundo uso da História é contemplado pelo materialismo histórico: trata-se de fazer o sujeito histórico despertar de sua letargia, de dar-se conta da exploração das classes dominantes (VI), da destruição cultural dos derrotados (VII), da exploração do proletariado disfarçada na moralização do trabalho (XI); resgatar o passado oprimido é uma oportunidade de luta revolucionária (XVII), de transcender o curso tradicional da história. Na sua metáfora, Benjamin define o primeiro uso como a história numa arena comandada pela classe dominante; na segunda ela é o salto de um tigre sob o céu livre, o salto dialético da revolução (XIV).
            Essa concepção de história norteia todo o trabalho de Josep Fontana, a começar pelo título de sua obra, História: análise do passado e projeto social; como define Vitor Biasoli no prefácio da obra, “para Josep Fontana, falar do passado de uma sociedade é posicionar-se em relação ao tempo presente, suas mazelas e grandezas. É definir-se em relação às lutas e aos projetos sociais em confronto na sociedade em que vive o historiador”. Para Fontana o foco da obra não é a historiografia, mas as idéias sociais subjacentes, o projeto social em que o historiador inscreve a sua tarefa (FONTANA, p. 9). Dentro desse escopo a obra é construída em torno do ataque aos modelos de concepção histórica que dão sustentação à sociedade capitalista, por um lado, e à exaltação ao materialismo histórico como modelo que estimula a crítica e a concepção de uma sociedade alternativa baseada em idéias socialistas.
            Ainda sobre essa dualidade, Benjamin acredita que o historicismo é desprovido de armação teórica; não passa de uma massa de fatos reunida para preencher o tempo homogêneo e vazio (XVII) e com pretensão de constituir uma história universal. É essencialmente acrítico. Fontana chama isso de genealogia do presente: a seleção e ordenamento dos fatos do passado de forma que conduzam em sequência até o presente, com o fim (consciente ou não) de justificá-lo, produzindo uma visão de que os acontecimentos se encadeiam e dão como resultado “natural” a realidade social em que vivemos; estabelecida esta ordem, todas ideias que se opuseram a ela são apresentadas como regressivas, e todas alternativas como utópicas. O materialismo histórico, em oposição, é dotado de método, e como tal dotado de um principio construtivo em sua base (XVII), o que lhe permite confrontar os objetos históricos estruturalmente e extrair as oportunidades da luta revolucionária, da transcendência; dai ele afirmar que a compreensão histórica gerada por esse método produz um fruto nutritivo. Fontana compreende o materialismo histórico da mesma maneira, como uma ferramenta para a práxis, para a construção de um novo projeto social a partir da compreensão crítica da realidade presente (idem, p. 11); estão ligados de forma indissolúvel história, economia política e projeto social. Para ele é uma quimera essa pretensão acadêmica de investigar desapaixonadamente o passado: toda leitura histórica está a serviço de um projeto social e contagiada por interesses. Benjamin, a esse respeito, fala da construção da história saturada de “agoras” (XIV); a primeira parte da obra de Fontana é uma longa exposição de como os historiadores através dos tempos cumprem basicamente uma função social de legitimar a ordem estabelecida, e de como a partir da Ilustração a História vai se converter em instrumento fundamental de análise política e base ideológica (idem, p. 77).
            Fontana procura mostrar que os historiadores desempenham papel importante no processo de desenvolvimento do capitalismo: a escola escocesa, por exemplo, ao produzir uma visão histórica como linha evolutiva que vai da barbárie ao capitalismo, apresentando a proteção à propriedade privada, a divisão social do trabalho e o governo civil como pré-condições para o crescimento econômico. Dentro dessa dinâmica, as rupturas, como as ideias de Rousseau e Mably de divisão igualitária da propriedade, ou as primeiras concepções de luta de classes, vão ser combatidas por uma legião de historiadores do inicio do século XIX; a Revolução Francesa vai ser submetida a um intenso processo de interpretação para ressaltar seu caráter burguês e liberal. Seguindo essa linha, Fontana vai destacar o caráter conservador das leituras históricas a partir da economia clássica e das incipientes ciências sociais. O processo de reação repete-se com a Revolução Russa: a reação contra o materialismo histórico vai utilizar-se de conceitos como a impossibilidade de extrair leis históricas (crítica à racionalidade do processo histórico). Estes capítulos iniciais, onde Fontana situa impiedosamente os historiadores em meio aos dilemas sociais de seu tempo, atende à perfeição a concepção benjaminiana de contemplar à distância os valores culturais da classe dominante, e sua tarefa de “escovar a história a contrapelo” (VII).
            Os capitulos seguintes, onde Fontana faz a crítica dos annales e das novas concepções de história, pode ser resumido nas ideias de Benjamin de falta de armação teórica e método (“ausência de idéias”, na ácida definição de Fontana, p. 213) e de conformismo e ingenuidade conceitual (o instrumental de outras ciências vai produzir concepções históricas ingênuas como a ideia de  “naturalidade” da exploração social).
            A crítica feroz à social-democracia está presente em ambos autores; Benjamin a considera o principal corruptor da classe operária alemã (XI); para ambos ela aparece como um dos fatores que levará à ascensão do nazismo.
            Finalmente, o apelo militante que Fontana dirige aos historiadores no epílogo (“Está nas nossas mãos voltar a começar o mundo de novo”) no sentido de cerrarem fileiras numa luta contra as ideias atrasadas do passado e no combate à mundialização está impregnado do messianismo das ideias de Walter Benjamin, quando fala da vitória sobre o Anticristo e no despertar das centelhas da esperança (VI). Essa fé militante transparece na biografia do primeiro (que morreu defendendo suas ideias) e no depoimento com que Fontana encerra o livro:

                        “O meu oficio preencheu-me estes anos e deu sentido à minha vida. Porque não é só um trabalho (…), como também o meu modo de estar neste mundo e de lutar com as armas do meu ofício contra todas as coisas que impedem que se realize uma sociedade onde haja (…) a maior igualdade possível dentro da maior liberdade possível”.

            BIBLIOGRAFIA

            BENJAMIN, Walter.Teses sobre filosofia da História. Texto fornecido pelo professor.

            FONTANA, Josep. História: análise do passado e projeto social. Bauru, SP: EDUSC, 1998.

            FUNARI, Pedro Paulo. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DAS "TESES SOBRE FILOSOFIA DA HISTÓRIA", DE WALTER BENJAMIN. Disponivel em: http://www.unicamp.br/cemarx/criticamarxista/3_PPFunari.pdf


                                                                  



quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Paris Babilônia (Rupert Christiansen)



            O Segundo Império inicia com o golpe de estado de Luis Napoleão, em 1852; será coroado Napoleão III, com poderes absolutos. Muito mais que pela repressão, o novo regime se sustenta pela propaganda: grandes obras públicas, como a reforma viária de Paris, a modernização da burocracia e o desenvolvimento econômico tornarão o regime aceitável para a burguesia. O casamento com a espanhola Eugênia de Montijo também não ajudou: a imperatriz estrangeira era tremendamente impopular. E a partir de 1860 o imperador se torna visivelmente cansado e doente.
            O livro busca dar um mostra do imaginário e da situação social presentes no final do Segundo Império. O recorte realizado pelo autor mostra uma sociedade impedida de falar sobre política que gasta toda sua energia em mexericos, novidades triviais e busca do prazer; a imprensa francesa dá um destaque mórbido a um caso de assassinato em série que concentra as atenções do público por meses. A prostituição havia crescido espantosamente: apesar de haver 3.500 garotas registradas na polícia como prostitutas em Paris, falava-se sem exagero em até 100.000 mulheres praticando o “ofício”, vindas de todas partes do mundo; isso, associado às condições de higiene da cidade, criou um surto de doenças venéreas.
            Haussmann, nomeado prefeito de Paris com plenos poderes, conduziu uma radical reforma na cidade entre 1853 e 1870. A cidade foi literalmente projetada de novo e reconstruída; dezenas de milhares de pessoas tiveram suas casas derrubadas e foram remanejadas para novas áreas habitacionais; a rede de esgoto foi quadruplicada, abertas mais de 80 quilômetros de ruas, e avenidas foram alargadas de 7,5 metros para 30! A principal revolução, no entanto, ocorreu na rede ferroviária, que foi sextuplicada; Paris foi dotada de um complexo sistema ferroviário que a integrava não só a todo o pais, mas ao continente; isso alimentou um círculo virtuoso de aumento no volume de cargas transportadas, ampliação do comércio, valorização dos imóveis e um verdadeiro boom na construção civil, que empregava 20% dos trabalhadores parisienses e consumiu 2,5 bilhões de francos.
            O financiamento de tão portentoso empreendimento, que inicialmente deu um importante impulso ao sistema bancário francês, ao final produziu um rombo de 500 milhões de francos e uma série de acusações de mal uso de verbas que trariam um fim pouco honroso ao mandato de Haussmann.
            Muitas iniciativas comerciais tidas como invenções americanas na verdade surgiram em Paris nestes anos de rápido crescimento urbano: a primeira cadeia de restaurantes fast food, que servia refeições aos apressados funcionários do comércio, repartições públicas e estabelecimentos bancários do centro da cidade; a criação de uma cadeia de mercearias que comercializava comida pré-cozida e a invenção da margarina, em 1869.
            O novo visual arquitetônico e sobretudo o rápido aumento da população urbana fez com que muitos intelectuais se queixassem de que a cidade havia perdido sua personalidade; tornara-se a Nova Babilônia...

            O autor está interessado sobretudo em pesquisar o imaginário parisiense que antecede e acompanha os acontecimentos da Comuna. Seu relato parte de artigos jornalísticos do período (tantos socialistas quanto conservadores) e de cartas e diários de testemunhas dos fatos, sejam pessoas comuns do povo ou personagens importantes do drama que se desenrola.
            Às vésperas da guerra franco-prussiana o Segundo Império está evidentemente agonizando. Os longos anos de estado policial e intensa censura política criaram uma enorme apatia na população; o espírito individualista e a busca do prazer constituem a tônica do dia. A oposição, impedida de se manifestar, volta-se com entusiasmo para idéias radicais e revolucionárias. É nesse contexto que Napoleão III cai na própria armadilha; um dos pilares sobre a qual havia edificado seu regime era o status de grande potência internacional que a França ostentava exageradamente. O brilho desse status havia perdido parte de seu fulgor desde que a Prússia vencera a Áustria, em 1866, e se tornara mais importante no cenário continental. Bismarck acompanhava  a situação com grande interesse: a proteção francesa aos principados alemães católicos era um dos grandes obstáculos para a unificação da Alemanha sob o comando da Prússia; uma guerra com os esnobes franceses lhe parecia o ingrediente faltante para concluir a unificação em grande estilo. O chanceler concebe então uma provocação: a Prússia apresenta um candidato Hohenzorllen ao trono espanhol, então envolto em aguda disputa sucessória. A França, como esperado, protesta, e a candidatura prussiana é retirada. Mas Napoleão III dá ouvidos a colaboradores que exigem uma resposta militar ao episódio; uma demonstração militar iria restaurar o prestígio do regime, argumentam. Estes são os argumentos frívolos que levam a França a declarar guerra. Os franceses dispunham então de 300.000 soldados, em sua maioria destreinados, mal equipados e mal administrados. A Prússia tinha uma magnífica máquina de guerra com 1 milhão de soldados e moral excelente...
            O mais incompreensível é que Napoleão III em pessoa decidiu assumir o comando das tropas. Embarcou em 28/07 rumo à frente de batalha, deixando a imperatriz como regente. Os franceses foram logo derrotados e começaram a recuar. O general MacMahon foi batido em 27/08 perto de Sedan e em 01/09 o próprio imperador foi cercado e feito prisioneiro!
            A notícia caiu como uma bomba em Paris. Eugenia negou-se a abdicar; os gritos de “vive la republique” ecoaram pelas ruas; parte da Garde Nationale amotinou-se. A imperatriz precisou fugir das Tulhérias e escondeu-se na casa de seu dentista; ao fim de uma epopéia de vários dias logrou chegar à Inglaterra. Em 06/09 o governador de Paris, general Trochu, assumiu o controle em nome do “Governo de Defesa Nacional”. Victor Hugo retornou do exílio; 300.000 parisienses foram mobilizados para defender a cidade. Trochu na verdade temia dois inimigos: os prussianos e os socialistas dos bairros operários.
            A partir de 15/09 a cidade foi cercada pelos prussianos. Uma tentativa do general Ducrot de barrar o avanço do inimigo fracassou em 19/09; Versalhes caiu no dia seguinte. A partir de 23/09 uma linha de comunicações com o restante do país foi estabelecida por meio de balões tripulados. Em 08/10 houve um princípio de rebelião para derrubar Trochu e instalar um governo socialista, logo controlada. Em 27/10 saíram de Paris as últimas legações estrangeiras.
            A situação torna-se deprimente: os prussianos limitam-se a bombardear a cidade e aguardam que se renda; os parisienses aguardam na inatividade que algum exército venha do oeste para romper o cerco. Enquanto isso enfrentam fomes e doenças. Apenas em 29/11 Trochu tenta romper o cerco, sem sucesso; a luta estendeu-se até 03/12 em torno das pontes do Marne; houve 12.000 perdas.
            O frio aumenta o sofrimento da população civil; há enorme mortandade de crianças. A partir de 27/12 novos canhões da Krupp intensificam o bombardeio. Os animais do zoológico são sacrificados e vendidos para alimentar a população. No inicio de janeiro o bombardeio fica ainda mais intenso. Há crônica falta de alimentos e carvão.
            Em 18/01 houve desesperada tentativa de romper o cerco com integrantes da Garde Nationale. Houve 1.500 mortos. A nova derrota provocou a queda de Trochu e sua substituição pelo general Vinoy. Em 22/01 houve novas agitações socialistas, com cinco mortos. Finalmente, em 26/01/1871, a cidade capitulou. Eleições realizadas em 08/02 empossaram um governo conservador liderado por Adolphe Thiers. A derrota e a eleição do novo governo produziram uma onda de protestos a partir de 24/02. Em 01/03, como parte do acordo de paz, forças prussianas ocuparam os castelos de defesa de Paris. O novo governo estabeleceu-se em Versalhes. Em 18/03 Thiers organizou uma grande ação militar para restabelecer o controle de Paris; a operação foi um fracasso: parte da Garde Nationale se amotinou e aliou-se aos insurgentes; o governo teve de voltar correndo para Versalhes. Um comitê da Garde Nationale assumiu o controle da cidade; era o inicio da Comuna.
            Em 22/03 forças conservadoras (os “amigos da ordem”) organizaram uma marcha de protesto que foi violentamente dispersada pela Garde Nationale. No dia 26 foi eleito o novo governo dos communards; na posse, em 28, 64 homens com cintas vermelhas nos braços indicavam a representatividade da comuna: 19 membros da Garde Nationale, 25 jacobinos, 9 blanquistas; 20 seguidores de Proudhon; apenas 2 deles tinham ouvido falar de Karl Marx.
            Christiansen destaca outras características curiosas do grupo: há dois místicos militantes, Julio Allix e Jules Babick (fundador do fusionismo); um jogador profissional de bilhar, um proprietário de bordel, um pintor e um compositor de sucesso, Jean-Baptiste Clement. Curiosamente, nenhum deles era operário. O presidente, Charles Beslay, tinha pouca autoridade executiva; a maior parte do poder era exercido por comitês. A partir de 01 de abril houve novos choques com tropas de Versalhes; no dia 03 houve uma ambiciosa ofensiva para capturar a sede do governo conservador; um grande fracasso.
            A igreja católica, vista como simpática aos versalheses, sofreu perseguições; diversos padres foram presos. Bismarck, como parte da pressão para assinar um tratado de paz definitivo com o governo francês, manteve canais diplomáticos abertos com a Comuna. Marx, em Londres, desesperava-se de ver a inércia dos parisienses, enquanto Thiers organizava um cerco da cidade em grande escala.
            A Comuna abriu as portas represadas do imaginário de reforma social. Havia de tudo, de utopia a idéias vanguardistas: a Union dês Femmes apoiava o esforço de guerra servindo nos hospitais, cantinas e barricadas. A legislação, pela primeira vez na história, adota o princípio de pagamento igual para trabalho igual. Os mais radicais defendem a abolição do casamento e o amor livre. O pagamento de aluguéis foi suspenso, e a Federação dos Artistas de Paris exigiu liberdade de expressão artística e reforma do ensino.
            A partir de 15/04 a Comuna tem moeda própria; por alguma curiosa razão, uma gravação da borda tem a frase “Dieu protege la France” (Deus proteja a França)...
            As forças de Thiers atacam a cidade desde o dia 19 e avançam lentamente; o bombardeio é constante. A Comuna tem divisões internas cada vez mais violentas; Louis Rossel fala da furgência de criar um comando militar que centralize a resistência, sem sucesso. Há motins e a disciplina decai sensivelmente.
            Em 29/04 uma enorme passeata com 15.000 maçons tentou negociar uma trégua, sem sucesso. Os maçons estavam numa situação ambígua neste conflito: 15 delegados da Comuna eram maçons, e idéias correntes na época associavam a Internacional com a maçonaria; ao mesmo tempo parte significativa do governo de Versalhes era formada por maçons.
            Em 30/04 o forte de Issy é recuperado pelos communards; a Garde Nationale calcula que mobilizou mais de 160.000 soldados. A imprensa internacional apresenta a Comuna sob as piores cores possíveis; para os jornais ingleses não passam de um bando de assassinos. O New York Times teme que a revolta seja imitada em outros lugares.
            O forte de Issy foi evacuado (08/05); isso provocou uma cascata de acusações de traição e incompetência. No dia 10 a França assinou o acordo de paz com a Prússia; estava aberto o caminho para o cerco completo da cidade. A partir daí as disputas internas ficam cada vez mais sérias. Em 22/05 as tropas versalhesas abriram uma brecha nos muros de Paris, e passam a avançar rapidamente, enfrentando apenas resistência esporádica. Um grupo de mulheres, as petroleuses, adota táticas de guerrilha, incendiando casas para atrasar o avanço inimigo. Em retaliação pelo massacre promovido pelos versalheses, a Comuna executa o arcebipo de Paris e cinco clérigos (24/05). Os dois lados praticam excessos cada vez mais sangrentos.
            A última barricada cai em 28 de maio. Versalhes perdeu 877 soldados durante o cerco e ocupação de Paris; a Comuna perdeu 3.500 combatentes. Mas na razia praticada na cidade após a ocupação houve 17.000 mortes em 15 dias... Cerca de 35.000 prisioneiros foram postos a ferros em navios no litoral da Bretanha. Um total de 4.500 deles foram degredados para Nova Caledônia.
            Uma nova constituição foi promulgada em 04/09; Thiers caiu logo após as eleições de 1873. Cogitou-se por longo tempo da restauração da monarquia; afinal prevaleceu um sistema republicano conservador.
            A reflexão sobre a derrota para a Prússia e os excessos da Comuna produziu conclusões interessantes: alguns lembraram as teorias do conde de Gobineau sobre o enfraquecidfmento racial devido à miscigenação. O médico alemão Karls Starck destacava a dissolução moral, o alcoolismo e o desregramento sexual como causas do fracasso. Entre 1870 e 1875 houve intensa repressão contra a prostituição; leis contra a embriagues foram instituídas em 1873. No mesmo ano aprovou-se a construção de uma nova basílica católica em Paris, o Sacre-Coeur. Uma onde de entusiasmo religioso espalhou-se pelo pais; as peregrinações em massa a Lourdes tornaram-se comuns. O Estado aumentou e, 3,5 milhões de francos o subsídio pago à igreja católica, instituiu-se um rigoroso ensino religioso nas escolas, e novas universidades católicas foram criadas.
            Obras que fazem elogios à Comuna só vão ser vistas na França a partir de 1886.
            A conclusão do autor é conflitante: embora ele tenha concebido a narrativa a partir da idéia de uma “Paris entidade”, dotada de vontade e identidades próprias, forjadas por todos os seus habitantes, esse questionado torna-se questionável a partir da própria narrativa. Paris surge muito mais como uma barulhenta e confusa multiplicidade, apontando para mil direções diferentes. Um caleidoscópio variado e contraditório de riqueza, tirania, decadência, revolução, mal generalizado, melancolia, tudo isso constituindo uma terrível indivisibilidade.