sábado, 16 de junho de 2012

Petrópolis: o universo de representações como retrato vivo da evolução política brasileira



            A visita a Petrópolis nos abriu as portas para um grande universo de leituras sobre o Brasil, a formação de sua identidade e a evolução político-social. Interessaram-nos particularmente as diversas leituras possíveis a partir do rico conjunto arquitetônico do centro histórico petropolitano, e de como ele retrata o universo de representações de momentos significativos da trajetória política do país, a começar pelo império.
            Petrópolis foi planejada para abrigar o Palácio Imperial de Verão. O projeto urbanístico da nova cidade nos informa ricamente sobre como o próprio Império Brasileiro via a si mesmo: basicamente como uma instituição européia em terras tropicais; a residência de verão é uma tradição muito comum entre as monarquias européias. Magníficos palácios foram construídos com essa finalidade, como o Nymphemburg de Munique, o Sanssouci (feito construir por Frederico o Grande, rei da Prússia), o Palácio Schonbrunn (residência de verão da familia imperial austríaca, em Viena) e o Royal Pavillion (Brighton, Inglaterra), entre tantos outros; a própria família real portuguesa passava o verão no Palácio de Queluz. Petrópolis é uma reprodução dos hábitos das famílias reinantes européias. O próprio clima ameno da Serra da Estrela nos remete de imediato ao clima europeu.
            O palácio de verão atende ainda outras demandas específicas do funcionamento das monarquias européias do período: o retiro sazonal da família imperial para uma cidade retirada onde a monarquia é a líder incontestável é uma forma de preservar a independência do monarca em relação às forças políticas e econômicas que se tornam cada vez mais preponderantes na agitação da metrópole. Não é de se estranhar que em momentos de crise diversos reis e imperadores tenham buscado refúgio em seus palácios de verão; os reis franceses chegaram ao extremo de deixar a capital em definitivo, mudando-se para Versalhes.
            A legitimidade do regime foi, na prática, conferida com a aclamação popular por ocasião de momentos como a Independência e a Maioridade (TORRES). Mas não podemos desprezar os elementos do imaginário que conferem autoridade efetiva ao regime. As referências arquitetônicas à Europa são, nesse sentido, parte expressa de um discurso de legitimação: é a ligação de sangue com as grandes casas reinantes da Europa que confere legitimidade à família imperial brasileira. As construções remetem diretamente aos símbolos da cultura européia de então, onde as monarquias buscam estabelecer alguma forma de identidade com o Império Romano: os motivos greco-romanos, como colunas e obeliscos; o frontispício clássico das edificações, as estátuas e bustos de personalidades. A Europa é o berço e bastião da cultura clássica, a luz civilizadora que se espalha pelo mundo.
            A arquitetura retrata também outro importante elemento de legitimação monárquica: a religião católica, religião oficial do Império (art. 5º. Da Constituição de 1824; cf. EMMERICK). É significativo, nesse sentido, que a despeito de o palácio imperial e as construções dos barões se estenderem generosamente no sentido horizontal, enquanto símbolos de poder terreno, apenas a Catedral de São Pedro tem o monopólio de expandir-se verticalmente, em direção aos céus, marcando claramente seu status privilegiado de poder espiritual.
            A distribuição espacial da cidade retrata as dinâmicas próprias do funcionamento de uma monarquia: o palácio imperial é rodeado pelos edifícios públicos que dão suporte ao funcionamento do governo e principalmente pelas residências das figuras de destaque da Corte; a posição das construções e sua suntuosidade possuem basicamente uma função de ostentação do status que seu proprietário possui dentro da corte imperial. Muito mais que um caráter funcional e utilitário, estas construções atendem a uma necessidade propagandística, são concebidas para “serem vistas”, para alardear tanto o poder econômico quanto o prestígio e/ou proximidade que o proprietário goza junto ao imperador.
            A própria família imperial, nesse sentido, preocupa-se em construir obras simbólicas: a suntuosidade da Catedral dedicada ao padroeiro da monarquia reafirma o comprometimento da instituição com o poder espiritual; o Palácio de Cristal, baseado nos palácios de cristal de Londres e do Porto, procura demonstrar a sensibilidade artística e a modernidade cultural da família imperial.

            Na seqüência vêm o golpe republicano e os governos oligárquicos da Velha República; a família imperial é expulsa do país; a arquitetura de Petrópolis retrata o discurso de ruptura do novo sistema político: o desprezo pela monarquia é visível no abandono em que são lançadas construções como o Palácio de Cristal ou a interrupção das obras da Catedral; algumas edificações, como o Palácio Amarelo ou a Casa do Barão do Rio Negro foram parcialmente descaracterizadas e adornadas com símbolos republicanos, como o barrete frígio (frisos do plenário da Câmara Municipal, no Palácio Amarelo) ou o busto feminino da Liberdade e o brasão de armas republicano de cinco pontas (frente da Casa do Barão do Rio Negro). Os elementos da cultura clássica greco-romana são reapropriados (Grécia e Roma são agora o berço do modelo republicano), bem como elementos do próprio simbolismo monárquico brasileiro, como a representação do Cruzeiro do Sul (agora simbolizando exclusivamente a independência do país). A Rua do Imperador torna-se Avenida Quinze de Novembro; a Rua da imperatriz será agora a Avenida Sete de Setembro.
            Os elementos de continuidade, todavia, também podem ser identificados: é significativo que as obras da Catedral de São Pedro tenham sido retomadas e concluídas ainda durante a Velha República; a despeito do discurso laico, a Igreja Católica seguiu exercendo um papel de grande influência na política nacional. Reproduzindo a tradição monárquica numa escala ampliada, o governo estadual do Rio de Janeiro buscou refúgio na cidade, entre 1894 e 1903, devido à agitação que havia na capital por conta da Revolta da Armada. À exceção de Floriano Peixoto, todos os presidentes veraneiam na cidade.

            Um segundo momento de ruptura ocorre a partir de 1930, com Getúlio Vargas. O sistema político oligárquico entra em crise e há enorme pressão sobre do estado por reformas; o novo sistema republicano, centralista e modernizador, vai buscar sua legitimidade numa experiência centralista anterior; o Império deixa de ser estigmatizado e passa por um intenso processo de idealização, como o período mágico que produziu a independência do país, manteve sua unidade, combateu seu maior inimigo externo e lhe conferiu um longo período de progresso e estabilidade. Pedro II surge agora como o líder paternalista que amava imensamente seu país. Os restos mortais da família imperial, trazidos de volta ao Brasil, são solenemente instalados no Mausoléu Imperial (no interior da catedral), inaugurado pessoalmente por Getúlio Vargas; o Palácio Imperial é transformado em museu e parte do rico acervo de uso pessoal da família imperial é recuperado e preservado.
            Durante o Estado Novo Getúlio passa longos períodos na cidade, acompanhado da família. Os hábitos do ditador trazem à Petrópolis a nova corte do regime: figuras políticas como Amaral Peixoto, João Goulart, Celina e Moreira Franco passam a freqüentar a região com frequência (MONTEIRO), e são seguramente um dos motivos que levaram o empresário Joaquim Rolla a investir na cidade e construir o magnífico Cassino-Hotel Quitandinha, em 1944. Como comenta brilhantemente o professor Pedro durante o passeio, enquanto Dom Pedro quis reproduzir a Europa em Petrópolis, Joaquim Rolla tentou construir aqui uma nova Las Vegas.

            Finalmente, nossa atenção se volta para o presente da cidade. É extraordinário ver um acervo patrimonial tão vasto e bem conservado no Brasil, mas ao mesmo tempo é preocupante esse processo em que os monumentos históricos passam a ser explorados como um produto vendido aos turistas, por diversas razões: a primeira delas é que o “produto” é moldado para atender o público que o consome, e esse processo compromete a análise crítica do acervo; como se verifica facilmente nas falas do guia turístico que nos acompanhou, a ênfase é normalmente posta na idealização do passado, sobretudo do passado imperial; os “personagens-produtos” são essencialmente bons, e sua bondade transparece em atitudes como a da princesa Isabel de convidar um negro liberto para dançar, ou de Getúlio Vargas caminhando tranquilamente pelas ruas e cumprimentando os passantes.
            Ao mesmo tempo o excesso de holofotes postos sobre grandes personalidades, como o imperador ou o inventor Santos Dumont, obscurecem toda a sociedade que está à sua volta, e todas as dinâmicas sociais que dão vida a um determinado período (exceção notável, nesse sentido, é a Casa do Colono, que busca retratar o modo de vida dos imigrantes alemães que construíram a cidade; uma única foto ali preservada, mostrando um garoto negro caçando junto com uma família alemã, é um retrato eloqüente das contradições sociais do periodo).
            Porfim, a demanda por novos “produtos” vai criando uma memória artificial da cidade: a presença da Casa Encantada, por exemplo, serve de desculpa para a construção de uma gigantesca réplica do “14 Bis” (cuja reprodução em miniatura é um dos artigos mais comuns nas lojas de lembrancinhas) ou um monumento homenageando os “heróis da aviação brasileira” na Praça da Liberdade, ou uma estátua de Santos Dumont no Museu de Cera. Uma construção que abrigou uma grande tecelagem no final do século XIX, um dos marcos da industrialização da região, está abandonado e desmoronando, enquanto um gigantesco “Museu da Cerveja” é patrocinado por uma fabricante local que faz um marketing pesado associando o nome da cidade ao seu produto.
            É um problema comum a qualquer grande destino turístico de caráter histórico, como Roma ou as Muralhas da China; nossa preocupação é que isso não ocorra no uso pedagógico ou na produção acadêmica sobre o patrimônio material da cidade: cercear o estudo histórico-social crítico em nome de uma “defesa do turismo” seria um crime. Um exemplo gritante está nos recentes desastres naturais que atingiram a região: longe de silenciar sobre o ocorrido, é imperativo estudar os processos que levam à ocupação desordenada do solo urbano, ou as dinâmicas sociais que conduzem ao poder administrações municipais tão empenhadas em desviar verbas emergenciais quanto em fazer vistas grossas às suas tarefas de fiscalização e prevenção.
            São estudos dessa natureza que produzem conscientização e mudança de paradigmas. Nenhum silêncio complacente vai fazer isso.


BIBLIOGRAFIA
EMMERICK, Rulian. As relações Igreja/Estado no Direito Constitucional Brasileiro. Um esboço para pensar o lugar das religiões no espaço público na contemporaneidade. REVISTA LATINOAMERICANA n.5 - 2010 - pp.144-172
MONTEIRO Ruy.  A República em Petrópolis, Política e Eleições Municipais, 1916-1996.  Petrópolis: Ed. Gráfica Serrana, 1997.
TORRES, João Camillo de Oliveira. A democracia coroada. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1964, p.81

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